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11/12/23
Onofre Alves Batista Júnior
Fernando Facury Scaff
Identifica-se um desequilíbrio financeiro na Federação brasileira independentemente de cor política. O cerne do problema está na análise entre receita, despesa e dívida.
Essa equação federativa está desequilibrada em favor da União, em detrimento de seus congêneres federados, estados e municípios, ocasionando efeitos absurdamente nocivos aos interesses da sociedade
Iniciemos pela dívida. No conjunto, estados e municípios já devem à União mais de R$ 1 trilhão. A dívida de Minas Gerais, por exemplo, era inferior a R$ 15 bilhões no ano 2000, e hoje alcança mais de R$ 160 bilhões em função dos juros cobrados pela União. Para piorar, a credora União, exige que os estados adiram ao Regime de Recuperação Fiscal, submetendo-os a exigências absurdas, o que agrava o quadro geral.
Observando a despesa, constata-se que o principal gasto da União é com o pagamento de sua dívida pública, enquanto as despesas fundamentais com educação, saúde e segurança ficam, em sua maior parte, com estados e municípios.
Ocorre que a União concentra cerca de 68% da receita tributária total.
Daí o desequilíbrio: a União tem muita receita e pouco gasto fundamental, concentrando suas despesas no pagamento de juros. E ainda busca aumentar sua arrecadação através de juros bancários cobrados de seus coirmãos federados. É como se estes fossem devedores comuns, e não copartícipes de governo na República.
Como isso ocorreu? Por diversos meios, um dos quais é o objeto deste artigo, que analisará o desvio de recursos que deveriam ser federativamente compartilhados por meio da Contribuição Social sobre o Lucro, que comprova a existência de fraude à Constituição e à Federação.
Vamos aos fatos.
A CSL foi instituída pela Medida Provisória nº 22, de 6/12/88, convertida na Lei no 7.689, de 15/12/88, adotando o mesmo fato gerador e base de cálculo do IRPJ. Desde o início é identificada como um complemento do IRPJ, embora batizada de “contribuição”, o que pretensamente acarretaria sua destinação à seguridade social — conceito completamente desvirtuado na atual fase do direito tributário brasileiro, no qual se pretende criar pela PEC 45 uma contribuição denominada de CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), cuja receita total será destinada ao custeio dos gastos gerais da União, e não a uma específica finalidade, com a saúde ou a seguridade social..
A CF prevê a partilha pela União de praticamente todos os seus impostos, sendo que 50% do montante arrecadado com o IR (IRPJ e IRPF) é transferido a estados e municípios, nos termos do artigo 159, I. Esse desenho decorre de que a base imponível renda pode ocorrer em qualquer parte do território nacional, o que justifica a competência tributária na União, porém, o resultado da arrecadação é redistribuído ao longo do território nacional por meio de estados e municípios, via fundos (FPE e FPM).
Como as contribuições não são compartilhadas federativamente, em sua esmagadora maioria, a União sempre evitou aumentar sua receita por meio dos impostos compartilhados, como o IR. Entre 1994 e 2002, a carga tributária brasileira subiu de 24% para 33% do PIB e a parcela das “contribuições” na receita total cresceu de 11% para 48%. Hoje, cerca de dois terços de todo valor arrecadado pela Receita Federal vêm de contribuições.
Isso reverteu o financiamento federativo, em prejuízo das unidades locais e regionais, afetando sua saúde financeira. O equilíbrio foi alterado pela União, em especial no caso da CSL, pois foi criada como um subterfúgio ao aumento do IRPJ, exatamente para fugir da partilha federativa. Na realidade, a CSL é um “tributo sobre a renda disfarçado” não compartilhado com estados e municípios, mascarado sob o rótulo de “contribuição”.
Identifica-se esse drible no compartilhamento da receita tributária sobre a renda, via contribuições, ao se constatar que a Lei 7.689/88, criou a CSL com alíquota de 8% (e então com um “L” a mais em seu nome, que era Contribuição Social sobre o Lucro Líquido — artigo 3º) e, ao mesmo tempo, foi também reduzida a alíquota do IRPJ para 30% (artigo 10), para fazer face ao mesmo montante de receita. Isso demonstra que os estados foram lesados, porque parte da arrecadação do IRPJ é dividida com os entes federados, mas a arrecadação da CSL fica integralmente com a União.
É patente que o interesse da União em criar a CSL se deveu ao desejo de reduzir o IRPJ, minimizando o quantum que deveria corresponder aos estados e municípios que foram e permanecem sendo fraudados na partilha de receitas tributárias.
É necessário distinguir entre incidência e rateio federativo. Em 2007 o STF decidiu por meio da ADI 15 que a incidência da CSL era constitucional. Esse julgamento refletiu uma relação entre o Fisco federal e os contribuintes. Ocorre que não foi analisada a questão do rateio federativo dessa arrecadação, o que deve ser objeto de análise específica. O julgamento faz coisa julgada entre partes, mas a questão financeira federativa subsiste e deve ser enfrentada, observando-se a fraude claramente perpetrada em prejuízo da receita de estados e municípios, ferindo o princípio federativo, ao deixar de compartilhar essa arrecadação.
Logo, uma coisa é a relação entre Fisco e contribuinte, e outra é a relação de partilha de receitas entre os entes federados, os quais vêm sendo fraudados com o drible federativo realizado.
Mensurar o dano ocasionado é outro problema. O que importa é identificar a questão jurídica que ocasiona o mal-estar federativo instaurado, e o desvio das verbas da CSL é apenas uma dessas causas.
Onofre Alves Batista Júnior é sócio do Coimbra, Chaves & Batista Advogados, professor associado de Direito Público da Graduação e Pós-graduação da UFMG, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela UFMG e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 11 de dezembro de 2023.