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09/04/24
Fernando Facury Scaff
Em uma das mais belas músicas brasileiras, Cazuza canta um amor que ainda existia, embora o relacionamento tivesse terminado: “Pra que mentir / Fingir que perdoou / Tentar ficar amigos sem rancor / A emoção acabou”.
Daí surge a ocultação do nome da pessoa amada: “Eu protegi o teu nome por amor / Em um codinome, Beija-Flor”. E pede “Não responda nunca, meu amor, nunca / Pra qualquer um na rua, Beija-Flor”. O verdadeiro nome do Beija-Flor ficou escondido para sempre, e morreu com o cantor em 1990, embora existam cogitações a respeito.
Pode-se usar esse paralelo para analisar o orçamento secreto, cujo ápice ocorreu entre a pandemia e o governo Bolsonaro, tendo, de certa forma (essa frase é extremamente importante) sido encerrado pelo julgamento realizado pelo STF, por maioria, na ADPF 851, relatada pela ministra Rosa Weber.
Do acórdão consta o que era denominado de orçamento secreto: “o esquema de barganha política por meio do qual o Executivo favorece os integrantes de sua base parlamentar mediante a liberação de emendas orçamentárias em troca de apoio legislativo no Congresso Nacional, valendo-se do instrumento das emendas do relator para ocultar a identidade dos parlamentares envolvidos e a quantia (cota ou quinhão) que lhe cabe na partilha informal do orçamento”.
Foi declarada inconstitucional essa ocultação, pois “a partilha secreta do orçamento público operada por meio das emendas do relator configura prática institucional inadmissível”, tendo violado “o primado do ideal republicano”, o “predomínio dos valores democráticos” e o “reconhecimento da soberania popular”, se constituindo em uma prática inaceitável em face dos postulados constitucionais “da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência”, inconciliável com “o planejamento orçamentário” e com “a responsabilidade na gestão fiscal”, além de incompatível com “o direito fundamental a informação” e com “as diretrizes que informam os princípios da máxima divulgação, da transparência ativa, da acessibilidade das informações, do fomento à cultura da transparência e do controle social”. Ou seja, estava tudo errado.
Troca de favores persiste
As consequências desse julgamento estão sendo vistas atualmente, pois, na prática: (1) o orçamento secreto passou a não ser mais secreto, com os parlamentares sendo identificados; (2) com isso, o “grosso” do valor das emendas “de relator” migrou para as emendas “individuais”, tendo restado apenas um “saldo” para aquelas; (3) e foi mantida a barganha com as verbas orçamentárias em troca de favores políticos tal como antes, sejam as emendas batizadas como sendo “de relator”, “de bancada” ou “individuais”.
Em síntese: mesmo sem ocultação, permanece a troca de favores financeiros entre o governo atual e os parlamentares visando compor a base de apoio. Foi revelado o nome do parlamentar e o destinatário das verbas, mas a relação permanece violando a ordem jurídica – com ou sem amor, pois isso não importa para a política.
Foi uma pena a decisão do STF, pois poderia ter decidido sobre a relação e não apenas sobre a ocultação. Saudades do Cazuza, que manteve oculto o nome do Beija-Flor, protegendo a pessoa amada e mantendo o amor, embora tenha encerrado a relação com uma música/poesia.
Enfim, ainda com o Cazuza, estivemos, “meu bem, por um triz / Pro dia nascer feliz / Hum, pro dia nascer feliz / O mundo acordar, e a gente dormir, dormir / Pra o dia nascer feliz / Ah, essa é a vida que eu quis / O mundo inteiro acordar, e a gente dormir / Todo dia é dia e tudo em nome do amor / Ah, essa é a vida que eu quis / Procurando vaga, uma hora aqui, a outra ali / No vai-e-vem dos teus quadris”.
Sou mesmo um romântico à moda antiga, apenas um “observador no escritório”, como fazia Carlos Drummond de Andrade.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 09 de abril de 2024.