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19/09/22
Por Fernando Facury Scaff*
Existe um velho truque de mágica, muito usado por políticos: chama-se a atenção para um lado enquanto o que é realmente importante ocorre em outro ponto, e, com isso, desvia-se o olhar do que é principal. No caso das presentes eleições, discute-se a urna eletrônica, mas o problema é outro.
Todo mundo sabe que o dinheiro público advém “do seu, do meu, do nosso suado dinheiro”, que é arrecadado de forma coativa através de tributos. Também é conhecido que os administradores desse dinheiro são os governantes (federais, estaduais e municipais), sendo que vários deles serão eleitos em outubro próximo. É igualmente sabido que existem melhores e piores governantes, sendo essa uma avaliação a ser feita nas urnas, pressupondo a honestidade de todos, sem a qual o problema descamba para uma pauta criminal. Nenhuma novidade em tudo isso.
Entendo ser positivo o uso do dinheiro público para financiar os partidos políticos e as candidaturas — é melhor do que vincular os candidatos diretamente às empresas privadas, quando pode ser maior a possibilidade de captura do interesse público pelo interesse privado. O que deve ser preservado é a paridade de armas, isto é, se alguém ganha um canhão para entrar na luta, o outro lado não pode ser municiado apenas com espadas. É necessário que haja alguma relação de equidade, de igualdade, no uso do dinheiro público nessa disputa, sob pena de um lado vir a ter enorme vantagem sobre o outro.
Exatamente por isso que o artigo 14, §9º, da Constituição, determina que lei complementar estabelecerá casos de inelegibilidade, a fim de proteger “a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
E a Lei Complementar 64/90 determina que são inelegíveis para qualquer cargo “os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes” (artigo 1º, I, “h”).
É claro que há uma diferença entre “uso” e “abuso”, este implicando em excesso, mau uso. Logo, o uso é permitido, o abuso deve ser condenado. Qual o limite entre uma e outra situação? Quando se ultrapassa a linha divisória entre o uso e se chega ao abuso?
Analisemos algumas situações recentes.
Ampliar em 50% o valor do Bolsa Família (Auxílio Brasil), às vésperas das eleições, se enquadra como uso ou abuso eleitoral, através da utilização de dinheiro público? Têm-se mesmo a impressão que os políticos descobriram apenas agora que tem gente passando fome no Brasil — nem todos concordam com isso, aliás.
Criar um mecanismo financeiro conhecido por orçamento secreto (RP-9, as emendas de relator), uma espécie de mensalão legalizado, com finalidade eleitoral e de apoio parlamentar, se enquadra como uso ou abuso de poder político ou econômico? Para garantir que haja dinheiro para bancar o orçamento secreto, foram reduzidos diversos outros gastos: (1) foi criado um teto de gastos com precatórios, adiando pagamentos já determinados pela Justiça; (2) foi estabelecido um teto para gastos com ciência e tecnologia (MP 1.136); (3) foi cortado dinheiro federal da saúde pública para gastos com a farmácia popular; (4) foi criado um mecanismo financeiro para driblar o controle do Senado Federal sobre o remanejamento das verbas, dentre outros ajustes pouco claros. Isso fere ou não a paridade de armas eleitoral? É uso ou abuso?
Foi até mesmo atribuído efeito imediato na redução do ICMS sobre os combustíveis, pois o STF já havia decidido estabelecer tal limitação apenas a partir de 2024 (Tema 745, Repercussão Geral), mas foi atribuída vigência imediata à Lei Complementar 194/22. O curioso é que os combustíveis efetivamente diminuíram de preço “na bomba”, mas não houve redução de preços nas cadeias produtivas. Afinal, o custo do frete diminuiu? E o preço dos transportes em geral? Nada.
Por falar em transportes, nosso dinheiro foi usado também para vale-gás, vale-táxi e outros vale-alguma-coisa, igualmente às vésperas da eleição. Uso ou abuso?
E se deve enquadrar como uso ou abuso a utilização das Forças Armadas e de todo o aparato oficial, a pretexto de comemoração do bicentenário da Independência, mas utilizado para fazer campanha eleitoral? Diz-se que foram eventos distintos: um eleitoral e outro oficial. Cara leitora e leitor, qual sua opinião? Seria algo como fazer uma festa na sua casa, sendo que a bebida e a comida que estão sendo servidas na sala foram pagas pelo contribuinte, e as que estão sendo servidas na cozinha foram pagas pelo dono da casa — quem acredita nessa separação? Serão distintos os convidados? E a decoração foi paga por quem?
Enfim, são casos financeiros que merecem detida atenção sob a ótica da paridade de armas eleitoral.
Não sejamos ingênuos. Tudo que acima foi relatado ocorreu recentemente, mas outros exemplos poderiam ser apresentados com referência aos demais governantes, desde 1988.
Em resumo, quem detém “a caneta com tinta”, mesmo sendo uma Bic, tem muito poder financeiro e político, o que envolve o de tirar dinheiro do seu bolso e colocá-lo onde bem entender, inclusive para sua eleição ou reeleição. E tem ainda mais poder quem usa as Forças Armadas como escudo retórico.
Se realmente quisermos que nosso país seja uma democracia republicana é necessário enfrentar essas importantes questões financeiras eleitorais.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 13 de setembro de 2022.