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12/09/23

CONJUR: Fundeinfra e outros fundos assemelhados nos 35 anos da Constituição

Por Fernando Facury Scaff*

Uma das normas financeiras mais importantes da Constituição de 1988 é o artigo 167, IV, que prevê o princípio da não-afetação, que consigna a Liberdade do Legislador Orçamentário, ao estabelecer que o legislador eleito (membros do Poder Legislativo e chefe do Poder Executivo) possa dispor de uma massa de recursos arrecadados para fazer frente ao plano de governo e às políticas públicas durante seu mandato.

Exatamente por isso é que tais recursos não são afetados a órgãos, fundos ou despesas específicas, devendo a receita estar liberada para a execução dos planos de governo dos representantes eleitos. Há um sentido de proteção financeira intertemporal nessa norma, que comporta as exceções normativamente previstas. Ou seja, a regra geral é a não-afetação, também conhecida por não-vinculação.

Ocorre que o mesmo inciso que consagra em sua parte inicial o princípio da liberdade do legislador orçamentário, instituindo a não-afetação de impostos a despesa, fundo, órgão ou função, estabelece diversas ressalvas excepcionando seu comando geral, que demonstram não ser completa tal Liberdade, pois são ressalvados: (1) O rateio federativo (repartição do produto da arrecadação) dos impostos a que se referem os artigos 158 e 159; (2) A vinculação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde (artigo 198, §2º) e para manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212); (3) A priorização de recursos para realização de atividades da administração tributária, como determinado, pelo artigo 37, XXII; (4) A afetação para a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no artigo 165, §8º, bem como o disposto no §4º desse artigo; além (5) do artigo 218, §5º, que traz exceções à não-afetação do artigo 167, IV, ao permitir que os entes federados intermediários (estados e Distrito Federal) vinculem parcela de sua receita orçamentária para financiar duas diferentes atividades: a de ensino e a de pesquisa científica e tecnológica, desenvolvidas por entidades públicas de fomento.

O STF já decidiu que a afetação de impostos a fundos específicos é inconstitucional por violar o artigo 167, IV CF, em diversas situações.

Colacionam-se, dentre outros, casos relatados pelo ministro Eros Grau, ADI 1.750, em 2006, relativamente ao financiamento de esportes no DF; ADI 3.576, ministra Ellen Gracie, julgada em 2006, sobre norma do estado do Rio Grande do Sul que criou o Fundo Partilhado de Combate às Desigualdades Sociais e Regionais naquele Estado; ministro Gilmar Mendes, ADI 2.529, julgado em 2007, referente ao financiamento da cultura no estado do Paraná; Agravo regimental no RE com Agravo 665.291, ministro Roberto Barroso, relativo a norma do município de Tupandi, no estado do Rio Grande do Sul, que vinculava quota-parte de ICMS para aplicação em saúde, declarada inconstitucional em 2016; ADI 553, ministra Cármen Lúcia, julgada em 2018, acerca do Fundo para o Desenvolvimento de Pequenas e Médias Empresas do estado do Rio de Janeiro; ADI 3.550, ministro Dias Toffoli, julgada em 2019, que previa a concessão de créditos tributários de ICMS como contrapartida ao Fundo de Aplicações Econômicas e Sociais do estado do Rio de Janeiro.

Discrepa desse rol a ADI 7.363-MC, de 2023, relativamente a um fundo do estado de Goiás (Fundeinfra). O ministro Dias Toffoli havia concedido a liminar sustando a vinculação da arrecadação determinada pela lei goiana, tomando por base a infringência ao artigo 167, IV. Ao submeter sua decisão ao referendo do Plenário, o ministro Edson Fachin liderou a divergência sob o argumento da falta de fumus boni juris, posição que se tornou majoritária, vencidos os ministros Dias Toffoli (relator original), Roberto Barroso e André Mendonça. A peculiaridade distintiva no presente caso, que o faz ser divergente dos anteriores, diz respeito ao fato de que este fundo implica em majoração da carga tributária, enquanto nos demais houve sua redução. Naqueles houve declaração de inconstitucionalidade, e no Fundeinfra foi negada a tutela liminar por ausência de fumus boni juris relativamente ao artigo 167, IV, CF.

O paralelo utilizado pelo ministro Edson Fachin foi o Fundersul, ADI 2.056, relatada pelo ministro Gilmar Mendes em 2007, na qual lei do estado de Mato Grosso do Sul havia conservado sua presunção de constitucionalidade ao instituir diferimento condicionado de ICMS, mediante o pagamento de certa contribuição que não foi considerada como tributo, assim, afastada do âmbito de incidência do artigo 167, IV.

Constata-se que nem sempre o STF perquire a espécie tributária para estabelecer a inconstitucionalidade do vínculo. Em 2007 foi declarada inconstitucional lei do estado de Santa Catarina, RE 218.874, ministro Eros Grau, pela qual eram vinculados superávits arrecadatórios do ICMS para reajuste de vencimentos de servidores públicos, despregando a vinculação dos conceitos formais de Direito Tributário. Situação semelhante ocorreu no julgamento da ADI 6.045, ministro Marco Aurélio, em 2020, referente ao estado de Roraima, tendo sido declarada inconstitucional norma que buscava vincular ao Poder Judiciário estadual saldos orçamentários positivos.

O mesmo se verificou na ADI 1.759, relativa ao estado de Santa Catarina, ministro Gilmar Mendes, na qual se declarou inconstitucional a vinculação de “parte da receita do estado”, mesmo que através de Emenda Constitucional estadual, destinada a programas de desenvolvimento do setor primário da economia. Em todos esses casos o STF considerou inconstitucional a norma estadual por violação ao artigo 167, IV, CF, embora a vinculação não fosse diretamente referida à arrecadação dos impostos, mas ao superávit arrecadatório ou a saldos orçamentários positivos, que pode ocorrer sobre diversas formas, através de receitas tributárias de taxas ou de receitas patrimoniais.

Os julgamentos na ADI 6.045, no RE 218.874 e na ADI 1.759 contrastam com a posição majoritária do STF no julgamento da ADI 7.363-MC (Fundeinfra), pela qual se busca a natureza tributária da exação para determinar o liame vinculativo da receita a um fundo.

Recentemente, em agosto de 2023, o ministro Luiz Fux proferiu um voto na ADI 7.382, considerando inconstitucional a Lei nº 3.617/2019, do estado do Tocantins, que instituiu o Fundo Estadual de Transporte (FET), relacionando, dentre as razões, que “a exação consubstancia tributo, porquanto compulsória, estando sujeita às limitações constitucionais ao poder de tributar”.

O ministro criou um tópico específico para distinguir a contribuição do FET/TO para a do Fundeinfra/GO, mencionando que, no caso de Tocantins “cuida-se de ‘contribuição no âmbito do ICMS’, destinada a fundo de infraestrutura estadual, exigida como condição para a fruição de incentivos e benefícios fiscais e/ou regime especial de fiscalização e técnica de arrecadação (ICMS-ST)”. Afirmou que o caso de Goiás “decorre da fruição de um regime especial de controle de exportação”, enquanto o de Tocantins possui “compulsoriedade inequívoca”, pois todos os “contribuintes que promovam operações de exportação estão submetidos ao pagamento da contribuição ao fundo estadual, sem qualquer opção”, o que caracterizaria essa cobrança como um tributo. Data máxima venia ao entendimento exposto pelo ministro Fux, a distinção efetuada entre o Fundeinfra e o FET não resiste a um exame mais detido sob a ótica do artigo 167, IV, CF.

Existem outros fundos assemelhados, que merecem redobrada atenção como o Fethab, do estado de Mato Grosso (ADI 6.420), e o Fundo de Equilíbrio Fiscal (Feef) e Fundo Orçamentário (FOT), do estado do Rio de Janeiro (ADI 5.635), ainda sob o escrutínio do STF.

Em todos esses casos, a análise do artigo 167, IV, CF é de crucial importância, e a jurisprudência do STF tem sido errática ao longo desses 35 anos de vigência constitucional. Urge melhor delimitar sua interpretação para que possa haver mais segurança jurídica. Observe-se ainda que este assunto possui correlação direta com o artigo 19 da PEC 45-A, da Reforma Tributária do consumo.

Em tempo: Parte desta análise compõe o texto “O art. 167, iv (não-afetação), em 35 anos da Constituição de 1988”, constante da obra coletiva denominada “35 anos da Constituição da República Federativa do Brasil”, organizada por Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Álvaro Ricardo de Souza Cruz, que será lançada no dia 4 de outubro no STF. Livro oportuno, que vale conferir na íntegra.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 12 de setembro de 2023.