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06/12/22

CONJUR: Inconstitucionalidades do orçamento secreto

Por Fernando Facury Scaff e Marina Michel de Macedo Martynychen

A ministra Rosa Weber pautou para este dia 7 de dezembro o julgamento da ADPF 854, na qual se discute a constitucionalidade do orçamento secreto, ou, em sentido técnico, os atos relativos à execução do indicador de Resultado Primário (RP) nº 09 (despesa discricionária decorrente de emenda de relator-geral, exceto recomposição e correção de erros e omissões) da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021.

A matéria já foi vastamente exposta aqui na ConJur, seja em colunas escritas por Élida Graziane Pinto, seja por Scaff, fazendo referência às 68 reportagens veiculadas pelo Estadão acerca do tema (todas acessíveis aqui), escritas por vários repórteres, dentre eles Breno Pires.

Apenas para facilitar a compreensão, deve-se expor que RP é um código contábil que significa Resultado Primário e existe para distinguir se a despesa é ou não financeira, com a finalidade de auxiliar na apuração do resultado primário ou nominal (ver aqui a distinção). Daí surge a classificação vigente (§4º, artigo 7º, Lei 14.194/21, que é a LDO para 2022):

RP0 – Despesa financeira;
RP1 – Despesa primária e obrigatória, considerada na apuração do resultado primário para cumprimento da meta;
RP2 – Despesa primária e discricionária;
RP4 – Despesa primária discricionária constante do Orçamento de Investimento e não considerada na apuração do resultado primário para cumprimento da meta;
RP6 – Despesa primária decorrente de emendas individuais, de execução obrigatória;
RP7 – Despesa primária decorrente de emendas de bancada estadual, de execução obrigatória;
RP8 – Despesa primária decorrente de emenda de comissão permanente do Senado, da Câmara dos Deputados e de comissão mista permanente do Congresso;
RP9 – Despesa primária decorrente de emenda de relator-geral do projeto de lei orçamentária anual que promovam alterações em programações constantes do projeto de lei orçamentária ou inclusão de novas.

A inconstitucionalidade do orçamento secreto está na violação do princípio republicano [1], existente em diversos âmbitos da isonomia (artigo 5º, caput, CF), a se considerar, ao menos: 1) quando obriga o uso do dinheiro público em prol da sociedade, e não de interesses próprios de cada parlamentar ou do Chefe do Poder Executivo; 2) em face do desrespeito à paridade de armas eleitorais; e 3) quando o dinheiro público é usado como instrumento de cooptação parlamentar. Nestes casos, haverá inconstitucionalidade pela violação do princípio republicano e desvio de poder.

Como pressuposto deve-se afirmar que é correto 1) que o Parlamento estabeleça as diretrizes gerais dos gastos públicos através do orçamento, bem como 2) que o orçamento seja obrigatoriamente executado pelo Poder Executivo.

Com base no exposto, vejamos quais são as emendas parlamentares previstas na Constituição.

Existem as RP6, que são as emendas parlamentares individuais (artigo 166, §§ 9º e 11, CF), apresentadas por cada um dos 594 congressistas. Por serem impositivas, o Poder Executivo terá que cumpri-las, tenham sido propostas por parlamentares da situação ou da oposição, o que as torna até louváveis, pois permitem atender às reivindicações de sua base eleitoral, embora haja desequilíbrio na paridade de armas, pois quem não é parlamentar e desejar se candidatar já terá menos recursos para gastar.

Existem também as emendas coletivas (artigo 166, §12, CF), subdivididas em RP7, que são as emendas de bancadas estaduais, e em RP8, que são as emendas de comissões permanentes (da Câmara, do Senado e mistas, do Congresso) e igualmente impositivas (artigo-A, CF). Estas permitem que certos blocos parlamentares se unam para reivindicar gastos de maior amplitude do que os individualmente estabelecidos, embora também tenham seus problemas (ver aqui).

Complicadas são as emendas do relator-geral (RP9), que acarretam gastos apenas em favor dos parlamentares alinhados ao Presidente, e decorrem de uma deturpação do entendimento do artigo 166, §3º, CF.

Por qual motivo surgiram as emendas de relator-geral, as RP9? Para criar uma injusta diferenciação entre iguais, em prol de quem se alinha politicamente aos interesses do governo — o presidencialismo de coalização brasileiro não está habituado a tratar todos os parlamentares de forma igual. As emendas RP6, RP7 e RP8 são isonômicas (de certo modo), pois devem necessariamente contemplar parlamentares da situação e da oposição, e são de execução obrigatória.

Desta forma, a questão é como criar blocos parlamentares para dar apoio ao governo? Resposta fácil e errada, que vem sendo adotada: privilegiando na distribuição de verbas públicas quem apoia o governo, seja de oposição, seja de situação — simples assim. Porém isso cria uma desigualdade injustificada, violando a isonomia republicana e quebrando a necessária paridade de armas eleitoral. Estas são as emendas RP9. Exatamente por isso que Arthur Lira, Presidente da Câmara dos Deputados e candidato à reeleição a esse cargo, já afirmou que tais emendas são “lícitas e constitucionais”, e que existem “duas maneiras de cooptar apoio no Congresso Nacional — orçamento secreto ou mensalão”.

A marcação contábil dessas emendas de relator geral como RP9 surgiu durante o governo Bolsonaro, na Lei 13.898, de 11/11/19 (LDO 2020, artigo 6º, §4º, II, “c”, número 6), tendo sido essa norma vetada pelo presidente no mesmo dia. Todavia, no dia 3/12/19 o presidente enviou ao Congresso o Projeto de Lei 51, visando alterar a Lei 13.898/19, propondo a reintrodução da norma que havia vetado. O Congresso aprovou a alteração cerca de 30 dias após, tendo sido editada a Lei 13.957, em 18/12/19, reintroduzindo a norma na LDO 2020. Isso ocorreu às vésperas da eleição para a Presidência das duas Casas do Congresso, o que ocorreu em 1/2/20, com a vitória de Arthur Lira, na Câmara, e de Rodrigo Pacheco, no Senado.

No exercício seguinte, a Lei 14.116, de 31/12/20 (LDO 2021, artigo 7º, §4º, II, “c”, número 4) previa as RP9, porém a norma foi vetada pelo presidente da República no mesmo dia. Neste caso, o veto foi rejeitado no Congresso, e a parte vetada foi promulgada em 26/03/21.

Para o corrente ano, como referido, na Lei 14.194, de 20/08/21, é previsto o marcador RP9, que não foi vetado (LDO 2022, artigo 7º, §4º, II, “c”, número 4).

Com a eleição do novo presidente da República, as RP9 voltam ao debate, em face de argumentos contrários à sua manutenção, expostos durante sua vitoriosa campanha eleitoral. Porém existe em concreto forte interesse político em sua manutenção, pois permite aos chefes do Poder Legislativo e do Executivo comporem interesses políticos com maior facilidade, manejando os recursos públicos de forma não isonômica. Afinal, há interesse em tratar igualmente os parlamentares em relação ao uso do dinheiro público? Haverá mesmo interesse em discutir “ideias” para o desenvolvimento do Brasil, ou é inevitável o uso do dinheiro público como moeda de troca política, tal como sugere o deputado Arthur Lira?

No âmbito jurídico, o STF deverá nos próximos dias buscar a resposta no âmbito da Constituição. A questão central é saber se o princípio da isonomia republicana vale ou não, embora existam outros aspectos envolvidos.

No âmbito político, a melhor forma de desarmar a bomba atômica do orçamento secreto é ampliando o valor das emendas parlamentares individuais e coletivas, que estão ao alcance de todos os parlamentares, sejam da situação ou da oposição, e expressamente vincular seu uso às políticas públicas (leia-se: de todos) que forem criadas ou estiverem sendo desenvolvidas, conforme expus com mais detalhes em outra coluna.

Dessa forma, os parlamentares terão uma quantidade de dinheiro público “para chamar de seu”, mas não para aplicar aleatoriamente, porém para reforçar as políticas públicas já em curso. Com isso, o uso do dinheiro público será isonomicamente utilizado pelos parlamentares da oposição e a situação e reforçará políticas públicas — além de permitir que o parlamentar tire fotos e espalhe outdoors informando que aumentou os recursos para tal ou qual finalidade.

Reiteramos que não é a solução ideal, mas é a possível para desmontar a bomba atômica do orçamento secreto. Espera-se que o STF ajude a desmontar essa bomba.

PS: Faz-se o registro de dois textos de Rodrigo Oliveira de Faria que tratam desse assunto, embora seu foco tenha sido o de descrever o mecanismo, e não o de o valorar juridicamente: 1) O desmonte da caixa de ferramentas orçamentárias do Poder Executivo e o controle do orçamento pelo Congresso Nacional e 2) As Emendas de Relator-Geral do PLOA nas Normas Regimentais do Congresso Nacional: Gênese, Configuração e Evolução Histórica .

[1] Para esse assunto ver SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2018.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Marina Michel de Macedo Martynychen é professora de graduação e de pós-graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil (Unibrasil), doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e advogada associada ao escritório Clèmerson Merlin Clève.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  06 de dezembro de 2022.