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14/03/23
Por Fernando Facury Scaff*
Dentre os pontos mais controvertidos da proposta de reforma tributária (PEC 45) está o da adoção de uma alíquota única para todo e qualquer bem ou serviço que venha a ser comercializado, inicialmente cogitada em 25% (percentual que considero subestimado, à míngua de estudos econômicos consistentes), casado com o da inexistência de qualquer espécie de benefício ou incentivo fiscal.
Como contrapartida a essa alíquota única, sem benefícios fiscais, está sendo proposto um mecanismo de cash back para as pessoas de baixa renda. Cash back significa devolução em dinheiro a quem pagou por uma determinada mercadoria ou serviço.
Segundo se identifica, a proposta tem dois focos: mudança de modelo, trocando o incentivo às empresas para um incentivo direto ao consumidor de baixa renda, e combate à concorrência predatória que pode ocorrer através da concessão de incentivos fiscais por empresa, e não por setor.
Notícias veiculadas pela imprensa dão conta da ideia geral, citando Bernard Appy: “De acordo com a pesquisa de orçamentos familiares, famílias com renda acima de 25 salários mínimos consomem três vezes mais produtos da cesta básica do que famílias com renda de até dois salários mínimos”. Não há dúvida sobre o alto custo da tributação sobre bens essenciais no Brasil, como comida, o que irá aumentar, mesmo considerando a subestimada alíquota de 25%.
O problema é que a tributação sobre o consumo acaba por cobrar o mesmo imposto para quem consome a mesma mercadoria, seja rico ou pobre — independentemente da renda, todos comem o mesmo feijão que contém a mesma carga tributária.
Logo, a devolução do valor do imposto é uma fórmula de redução de custos para quem ganha menos. Teoricamente louva-se a iniciativa, mas será que vai funcionar na prática? Tenho muitas dúvidas.
Na teoria, o consumidor de baixa renda incluirá seu CPF na nota fiscal de compra e automaticamente será gerado um crédito para ele, a ser resgatado conforme vier a ser estabelecido pela lei complementar a ser editada. Algo semelhante (embora não idêntico) ao mecanismo que já existe em vários estados, como em São Paulo, onde é denominado de Nota Fiscal Paulista.
O mecanismo é muito permeável a fraudes, pois o que impediria que uma pessoa sem baixa renda se beneficiasse do mecanismo? Resposta oficial: basta vincular ao CadÚnico ou regular pela tabela de isenção do imposto de renda.
Ocorre que os dois mecanismos não gerarão os efeitos pretendidos. O Brasil tem cerca de 204 milhões de pessoas, mas apenas 34 milhões declaram Imposto de Renda, o que, sem descer a maiores detalhes, já inclui um universo vastíssimo de possíveis beneficiários desse cash back.
Por outro lado, e aqui está o ponto central, usar o CadÚnico gerará mais um Bolsa Família no Brasil, sem nenhum critério — os quais existem e são rigorosos nesse programa.
Alega-se que essa medida já foi adotada com êxito no Rio Grande do Sul, porém observa-se que inicialmente o governo gaúcho devolvia um valor fixo por família, e posteriormente passou a devolver por CPF, com base no cruzamento de dados entre o valor da compra e a situação cadastral da família, o que leva, mais uma vez, a alguma vinculação a uma espécie de cadastro. Ou seja, há uma completa desconexão entre o que se paga de tributo ao comprar um quilo de feijão e o que se receberá de devolução — o que será isso se não um novo sistema de auxílio aos carentes?
O Sindifisco relacionou a experiência com esse sistema em vários países, e pode-se constatar que sua efetividade se assemelha muito mais a um auxílio às famílias carentes do que a uma efetiva devolução do que foi pago no consumo.
Nada contra a concessão de auxílios, desde que bem desenhados financeiramente (matéria de gasto público, própria do Direito Financeiro), mas isso não tem pertinência com a arrecadação (matéria de Direito Tributário). As disciplinas devem se correlacionar, mas são temas diversos.
Mais correto e adequado seria estabelecer a tributação do consumo no destino (o que está contemplado nas PECs da reforma tributária e evitará a guerra fiscal) e criar alíquotas diferenciadas por produto, reduzindo ou isentando as referentes à cesta básica, dentre outras que a política fiscal vier a determinar. O uso de alíquota única gerará um efeito perverso no país, e não apenas aos carentes.
Ao lado disso, deve-se conceder auxílios a quem deles necessitar, de tal forma que deixe de depender desse valor para sobreviver em algum momento de sua trajetória pessoal.
Vincular a análise de um tema (cash back) com o da instituição de alíquota única para a tributação do consumo é um non sequitur, isto é, são dois raciocínios corretos, mas sem correlação de um com o outro.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 14 de março de 2023.