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06/02/23
Por Fernando Facury Scaff*
Somos pródigos em constitucionalizar direitos. Isso ocorreu na Constituinte de 1987/88, e foi ampliado ao longo do tempo por meio de mais de 130 emendas constitucionais. No âmbito do direito financeiro o que já era vasto foi intensificado a partir da Emenda Constitucional 95/16, que criou o teto de gastos, e, na sequência, diversas ECs foram necessariamente aprovadas para alteração desse dispositivo a fim de criar goteiras financeiras para que o país permanecesse funcionando. Basta ver que a versão original do artigo 167 já era enorme, e hoje, até o momento em que estas linhas estão sendo escritas, já foi alterado e acrescido dos artigos 167-A até o 167-G, todos envolvendo matéria de direito financeiro. Não custa lembrar uma definição de direito financeiro para se dar conta de sua amplitude e importância: ramo do direito que estuda como o Estado organiza e controla a arrecadação, o gasto, a dívida, e como tudo isso é repartido, em busca da concretização de um Estado de direito Democrático e Republicano. Tal definição contempla as diversas áreas em que este se divide: orçamento, controle, receita, despesa, dívida e federalismo fiscal, visando alcançar os objetivos constitucionais.
Com tantas alterações constitucionais penso não termos uma Constituição rígida, como alardeiam os constitucionalistas. Em muitos casos sequer são cumpridas as regras do processo legislativo constitucional, como, em concreto, se viu na aprovação da PEC 123/21, votada de afogadilho diretamente no Plenário da Câmara e do Senado, sem o devido trâmite nas comissões, como expus anteriormente. Até mesmo alterações nas Leis Orgânicas dos municípios requerem um interstício mínimo de dez dias entre as votações (artigo 29, CF), o que não se vê no trâmite das PECs federais.
Será que precisamos de tantas regras de direito financeiro na Constituição? Penso que não.
Existem normas de estrutura, normas de organização e normas que apontam objetivos (na dicção de Eros Grau, normas-objetivo). Na Constituição devem estar as normas que veiculam os objetivos da sociedade em relação ao direito financeiro, como a que determina o uso dos recursos públicos visando a redução das desigualdades regionais e sociais e a erradicação da pobreza (artigo 3º, III) ou a que estabelece o âmbito do controle financeiro e orçamentário do país (artigo 70, CF). Embora algumas normas de estrutura pudessem estar fora da Constituição, nela possuem espaço, como a que estabelece a composição dos Tribunais de Contas (artigo 73, CF). Todavia, grande parte das normas de conduta, que são aplicadas à regulação da conjuntura, não deveriam estar na Constituição — um bom exemplo é a norma que estabelece procedimentos prudenciais para ajustes fiscais, vedando condutas quando a relação entre receitas e despesas correntes superar 95% em 12 meses (artigo 167-A, CF), sem falar em grande parte das normas constantes do ADCT.
O direito financeiro hoje é regulado por uma enormidade de normas constitucionais e legais esparsas, e muitas vezes conflitantes entre si, sem falar em sua aplicação dúbia para Estados e Municípios, o que aumenta exponencialmente a complexidade da matéria. Possuem destaques a vetusta Lei 4.320/64 e a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00), dentre muitas outras. Existem Resoluções do Senado acerca dos limites da dívida pública, bem como sobre a partilha do ICMS. Existem até mesmo normas advindas de Emendas Constitucionais que não foram encartadas no texto da Constituição, como se vê na EC 109/21, cujo importante artigo 5º, determina que o superavit financeiro dos fundos públicos poderá ser usado para amortizar a dívida pública — são normas constitucionais sem pouso na Constituição, que vagam ao léu.
Enfim, transformamos o âmbito financeiro de nossa Constituição em regulamentação normativa da Secretaria do Tesouro Nacional. De certo modo, isso já havia sido feito em matéria tributária, inserindo disposições que são mais adequadas à instrução normativa da Receita Federal ou de receitas estaduais.
A situação chegou a tal ponto que na EC 126, de 21/12/22, consta uma disposição juridicamente esdrúxula, porém politicamente adequada, pela qual se determina prazo para que o presidente da República encaminhe ao Congresso um projeto de lei complementar com o objetivo de “instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país” (artigo 6º) , tendo sido prescrito que: “Ficam revogados os artigos 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias após a sanção da lei complementar prevista no artigo 6º desta Emenda Constitucional” (artigo 9º). É isso mesmo! Lei complementar revogando automaticamente diversos artigos da Constituição — Kelsen e o positivismo jurídico deve estar se revirando no túmulo, embora a ideia e a intenção sejam boas.
É imprescindível que o ordenamento financeiro seja reanalisado a fim de que exista segurança jurídica. Inserir tudo que se imagina na Constituição não a tornará mais forte e respeitada, apenas ampliará a luta surda que se vê pela partilha dos escassos recursos públicos (reserva do possível) e escolhas trágicas, conforme escrevi tempos atrás.
É imprescindível que se dê um freio de arrumação em tudo isso, em nome da tão decantada governabilidade e da imprescindível segurança jurídica. É necessário criar um Código de Direito Financeiro para que estas normas se tornem mais estáveis, claras e coerentes entre si, e, espera-se, sejam efetivamente cumpridas.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 31 de janeiro de 2023.