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20/01/22
Por Fernando Facury Scaff*
O assunto tributário do momento é a Lei Complementar 190, do último dia 4, que regulamenta o diferencial de alíquota do ICMS (Difal), o que me fez recordar uma antiga e bela música de um compositor paraense, Billy Blanco, cujo refrão é “O que dá para rir, dá pra chorar”. Os contribuintes estão rindo, os estados estão chorando, e quem é tecnicamente responsável por isso é o presidente da República — este é o mote desta coluna.
Iniciemos pelos fatos. O problema se inicia em 2015, quando foi aprovada a Emenda Constitucional 87, que regulamentava a divisão federativa do ICMS entre o estado de origem e o de destino. Antes dessa Emenda, quando um consumidor da Bahia adquiria uma mercadoria pela internet, o ICMS ficava integralmente com o estado de origem do estabelecimento vendedor — São Paulo, por exemplo. Logo, o consumo ocorria na Bahia, mas o ICMS ficava todo com São Paulo. A EC 87 regulou esse rateio federativo, não só para o comércio eletrônico, mas para todas as operações interestaduais, estabelecendo que parte desse ICMS deveria ser de São Paulo (estado de origem da transação) e parte da Bahia (estado de destino da mercadoria) — esta segunda parte seria o Difal, diferencial de alíquota. Com agilidade, os estados regularam a matéria através do Convênio Confaz 93/15 e passaram a dividir o ICMS.
Ocorre que os contribuintes viram uma falha jurídica no procedimento, pois essa cobrança de Difal estava sendo imposta sem que tivesse havido uma lei complementar que a regulasse. O STF, instado a decidir através da ADI 5.469 e do RE 1.287.019 (Tema 1.093 da repercussão geral), reconheceu em fevereiro de 2021 que os contribuintes estavam corretos, declarando a necessidade de lei complementar para que houvesse tal cobrança, e validando as inconstitucionalidades identificadas até 31 de dezembro de 2021, através de modulação.
O Congresso fez a sua parte, tendo aprovado em dezembro o PL 32/21 e o encaminhou para sanção presidencial. Nesse meio tempo, mais uma vez com muita agilidade, os estados aprovaram em 27 de dezembro o Convênio Confaz 236/21 regulando a matéria (embora sua publicação só tenha ocorrido no útimo dia 6). Ocorre que a sanção presidencial ao PL 32/21 só ocorreu na terça-feira (4/1), transformando-se na Lei Complementar 190.
Vistos os fatos, quais as consequências?
Para os sorridentes contribuintes, essa lei complementar só produzirá efeitos em 2023, isto é, no exercício posterior à data em que foi publicada, conforme determina a Constituição no artigo 150, III, “b”, cujo texto é translúcido: (é vedada a cobrança de tributos) “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”. Com isso, não será possível a cobrança do Difal — aquela parcela devida ao estado de destino da mercadoria adquirida. Isso trará forte proveito aos grandes varejistas, que vendem para todo o país.
Para os chorosos estados a situação é financeiramente ruim, pois ficarão sem essta fonte de arrecadação durante o ano de 2022. Cálculos preliminares apontam para perdas de R$ 10 bilhões neste ano. Argumentam que o artigo 3º da Lei Complementar determina que seus efeitos se iniciarão 90 dias após sua publicação (regra da noventena, prevista no artigo 150, III, “c”, CF), o que seria correto, caso a lei complementar tivesse sido sancionada em 2021, todavia, como foi em 2022, sobrepõe-se o artigo 150, III, “b”, CF, acima transcrito, que dá maior garantia aos contribuintes, e, como se trata de um direito fundamental, deve ser lido com maior abrangência.
Argumentam também os chorosos estados que não se trata de novo tributo, mas tão somente da divisão de um tributo já existente. Gosto do argumento, que poderia ter sido muito bem explorado, mas já foi ultrapassado pelo STF no julgamento referido, pois nele foi exigida lei complementar para sua cobrança. Veja-se o seguinte trecho da ementa: “Houve, portanto, substancial alteração na sujeição ativa da obrigação tributária”. Logo, trata-se de uma argumentação vencida — “Inês é morta”.
Outro aspecto do problema está na harmonização federativa entre as normas, pois, segundo o STF, são necessárias leis estaduais para que possa haver essa cobrança. Vários estados editaram novas normas, conforme levantamento preliminar efetuado (Bahia, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Roraima, São Paulo, Sergipe e Tocantins). Outros se baseiam na validade das normas que já existiam (Rio de Janeiro). O ponto é: tais normas estaduais são válidas, mesmo editadas antes da lei complementar? Hugo Funaro, com perspicácia, apontou a variação jurisprudencial do STF acerca dessa matéria. Essa é outra questão a ser enfrentada em 2023 e após.
Quem é o responsável por todo esses problemas, que tanta dificuldade trará às empresas e aos governos estaduais? O presidente da República, que saiu de férias sem passar o bastão ao vice-presidente. Sou completamente favorável a férias, inclusive para o atual presidente da República, que não se vê como um servidor público. Há mesmo quem diga, de forma jocosa, que só tem direito a férias quem trabalha, e a agenda do atual presidente da República é um vazio só, repleta de passeios de moto e de jet-ski, ou, quando muito, de viagens longuíssimas para inaugurar uma ponte de madeira de 18 metros de comprimento nas proximidades de uma comunidade indígena em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
O fato é que qualquer empresa de fundo de quintal estabelece escala de férias, indicando substitutos durante o período de descanso do titular, mas o presidente da República se nega a fazê-lo, pois tem suas implicâncias com o vice-presidente. Durma-se com um barulho desses… Imaginem se na padaria da esquina a “pessoa do caixa” entrasse em férias e ninguém tivesse sido escalado para substituí-la — não haveria faturamento?
Outro grupo que está sorrindo são os advogados tributaristas, que seguramente serão demandados pelas empresas para defender seus interesses nesse contencioso, pois alguém tem dúvida de que os estados cobrarão o Difal na entrada das mercadorias em seu território após 90 dias da publicação da Lei Complementar 190/22? O cenário dos problemas está montado e os advogados tributaristas serão imprescindíveis para reafirmar a Constituição nessas lides que durarão anos, sendo mais um “esqueleto financeiro no armário” para as empresas e os sucessivos governos estaduais. Ou seja, muita confusão à vista.
Enfim, trata-se de mais um problema ocasionado pela completa desarticulação do governo federal, que transformou a gestão do país em uma bagunça sem fim. Ou será que, nesse caso específico, houve má-fé do presidente para com os governadores?
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 10 de janeiro de 2022.