Usamos cookies para melhorar a funcionalidade do nosso site, ao continuar em nossa página você está concordando em recebê-los.
Para obter mais informações, visite nossa Política de Privacidade.
11/04/23
Por Fernando Facury Scaff*
Sempre alerto para a necessidade de se olhar de forma conjunta para os problemas de receita, despesa e dívida, a fim de que se tenha um plano de voo adequado visando resolver os graves problemas existentes nas finanças públicas brasileiras. Uma boa oportunidade foi a apresentação do novo arcabouço fiscal apresentado em poucos slides pelo ministro Haddad dias atrás.
A proposta é muito mais sofisticada e inteligente que o tosco e moribundo teto de gastos, porém falta detalhar um pedaço importante desse quebra-cabeças, relativo à receita pública, em especial a tributária, que sairá do sensível bolso da sociedade.
Tentarei ser didático na explicação da proposta de arcabouço fiscal, analisando-o por partes.
Pelo lado da despesa, o arcabouço está calibrado sob o título de Reparação Social do Brasil (slide 6), envolvendo mais dinheiro para o Bolsa Família, para a área de Saúde e a elevação do salário-mínimo, além de ampliar o limite de isenção do Imposto de Renda. Foram criadas bandas limitadoras do gasto público (slide 7), que só poderá crescer entre 0,6% e 2,5%. Com isso, o crescimento real das despesas estará limitado a 70% da despesa primária dos últimos 12 meses. Caso o crescimento das receitas venha a ser inferior à banda, haverá a obrigação de redução das despesas para 50% do crescimento da receita no exercício seguinte.
Adotados os parâmetros acima para a despesa, haverá um piso de investimentos (não se sabe se dentro ou fora da banda), que poderá ser ampliado, caso ocorra resultado primário acima da banda. Ou seja, o esforço de arrecadação será destinado a investimentos, o que é positivo. Não consta dos poucos slides apresentados, mas em entrevistas foi informado que o conceito de investimentos será ampliado para incluir capital humano, o que é igualmente positivo.
Pelo lado do necessário pagamento da dívida pública, consta a manutenção da mecânica de resultado primário, isto é, a dívida será paga de conformidade com o que for economizado em gastos correntes e no piso de investimentos. O montante a ser pago da dívida dependerá da taxa de juros, que é fixada de forma autônoma pelo Banco Central. Para simplificar: mais juros equivalerá a maior dívida a ser paga e maior arrocho nas despesas correntes e no piso de investimentos.
O arcabouço possui uma dinâmica interessante, diferente do teto de gastos, que era estático, amparado tão somente na inflação de um ano para outro. A despeito disso, não estou seguro de que garanta tudo que foi listado: menos inflação, mais estímulo ao investimento privado, menos juros na dívida pública etc. (slide 11). Afinal, o governo não controla a variável dos juros, em razão da autonomia do Banco Central, e nem a inflação, muitas vezes causada por fatores internacionais.
O que não foi detalhado no plano exposto é a parte da receita. Observe-se que a proposta de arcabouço é inteiramente calcada no aumento de receita.
As receitas podem ser oriundas do patrimônio público ou dos tributos. Sob a ótica do patrimônio, descarta-se nesta análise sua venda, pois fora do perfil ideológico do atual governo. Pode haver maior arrecadação com o aumento do valor referente à sua exploração, o que não foi mencionado, porém se trata de uma peça pequena dentro desse quebra-cabeças.
A peça importante que falta ser apresentada diz respeito à receita tributária.
Pelo lado da incidência existe um pacote frankenstein em trâmite no Congresso, visando (1) reformar o sistema de tributação sobre o consumo, composto por duas PECs (45 e 110, para criar o IBS) e um PL (3.887/20, para criação da CBS), e (2) visando a reformar a tributação sobre a renda, existe o PL 2.337/21. Tudo desarticulado e oriundo dos governos anteriores: Temer e Bolsonaro.
Existe também o lado das renúncias fiscais, que é um campo vastíssimo e mal analisado.
Penso que o governo buscará aumentar sua receita pelos dois lados.
Iniciemos pelo lado da incidência tributária, o do pacote frankenstein. É imprescindível que o atual governo declare, em alto e bom som, o que pretende fazer com isso. As duas PECs não possuem um texto unificado para análise, e as promessas divulgadas não encontram ressonância em nenhum deles. Um exemplo: mais recentemente diz-se que existirão diferentes alíquotas para o IBS, porém os projetos não demonstram. Outro problema: no formato atual as PECs incentivarão o desemprego formal, ampliando a pejotização. Ademais, o que será feito no âmbito da tributação da renda, tema que parece ter sido deixado de lado nos atuais debates? Haverá tributação dos dividendos, com ou sem abatimento do que foi pago antecipadamente? Aumentará o imposto de renda sobre aplicações financeiras? Existem tantas dúvidas que este texto ficaria cheio de pontos de interrogação.
Pelo lado da renúncia das receitas a grande ameaça é a utilização do reconhecidamente impreciso Demonstrativo dos Gastos Tributários (DGT) elaborado pela Receita Federal, no qual, dentre outras imprecisões, consta que o regime de tributação do Simples é uma renúncia fiscal, o que é um erro, pois amparado no artigo 146, III, “d” da Constituição. Ainda pelo lado das renúncias fiscais, o ministro Haddad recentemente atacou a não incidência de tributos da União, relativa às isenções concedidas pelos estados, o que foi objeto de rejeição de veto pelo Congresso, com a promulgação do artigo 9º da Lei Complementar 160/17 — vejam o problema federativo que alterar isso poderá gerar: os estados incentivam e a União tributa o incentivo concedido.
Enfim, para tornar curta uma longa história, falta apresentar adequadamente uma peça importante nesse quebra-cabeças do arcabouço fiscal, que é a parte das receitas, em especial a tributária. É uma incógnita o que o governo pretende fazer com o pacote frankenstein que tramita no Congresso e com as renúncias fiscais existentes.
Dentro desse cenário incompleto, a única coisa que se pode ter como certa é que haverá aumento de tributo. As dúvidas são: como, quando, para quem e de quanto.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 11 de abril de 2023.