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29/08/23

CONJUR: O STF e a vinculação para ensino e pesquisa nos 35 anos da Constituição

Por Fernando Facury Scaff*

Em direito financeiro, vincular implica em criar um liame entre uma receita a uma específica despesa. Trata-se de uma fórmula jurídica de exceção, pois a regra geral é a não-vinculação, também denominada de não-afetação. As exceções estão contempladas no artigo 167, IV, CF, que veicula a regra geral da não-vinculação, e admite algumas ressalvas, que permitem vincular receitas a despesas com saúde e ensino.

Outra exceção se verifica no artigo 218, §5º, CF, que permanece intacto desde a promulgação da Constituição, permitindo aos Estados “vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica”. Esta norma vem sendo interpretada restritivamente pelo STF ao longo desses 35 anos de vigência da Constituição.

Um caso emblemático se verifica na ADI 780, relatada de forma cautelar pelo ministro Carlos Mário Velloso, julgada em 1993, na qual se discutiam diferentes vinculações: uma para a Fundação de Amparo à Pesquisa no Rio de Janeiro (Faperj) e outra para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O percentual atribuído à Faperj foi presumido constitucional, amparado no artigo 218, §5º, porém o referente à Uerj foi declarado inconstitucional, por violar o artigo 167, IV, sem levar em consideração que a possibilidade de vincular verbas para o ensino está previsto nas duas normas, em diferentes dimensões. Em 2008 foi julgada prejudicada essa ADI em razão do advento da Emenda Constitucional 4 à Constituição do Estado do Rio de Janeiro.

Em 2008 foi proposta a ADI 4.120 pelo governador do estado do Rio de Janeiro, atacando os mesmos dispositivos antes apontados na ADI 780. Por decisão monocrática, por estar no exercício da presidência, o ministro Gilmar Mendes deferiu a liminar para suspender a vinculação à Uerj, mantendo a da Faperj, nos exatos termos em que havia sida deferido cautelarmente na ADI 780. A liminar foi submetida a referendo pela relatora, ministra Cármen Lúcia, tendo sido confirmada à unanimidade. A decisão de mérito, julgada em 2014, manteve o que havia sido decidido anteriormente quanto à presunção de constitucionalidade da vinculação para a Faperj, ancorada no artigo 218, §5º, e de ser inconstitucional a vinculação para a Uerj, por violar o artigo 167, IV.

O ponto central é que não foi feita nenhuma correlação sequer, em nenhum desses julgamentos, ao fato de que a Uerj é uma “entidade pública de fomento ao ensino…”, a teor do que expressamente consta no artigo 218, §5º, que amparou a vinculação à Faperj, na frase seguinte do mesmo artigo: “… e à pesquisa científica e tecnológica”. O debate sequer foi cogitado, até mesmo para eventualmente ser afastado — é como se a palavra “ensino” não constasse da referida norma.

É curioso observar que, nesse meio tempo, em 2009, havia sido proferida decisão reconhecendo a constitucionalidade da vinculação ao ensino, embora não tenha sido cogitado no debate o artigo 218, §5º. Por meio da ADI 2.447, relatada pelo ministro Joaquim Barbosa, não foi reconhecida violação ao artigo 167, IV, de Emenda à Constituição do Estado de Minas Gerais que estabelecia vinculação de 2% da receita orçamentária corrente ordinária para a Universidade Estadual de Minas Gerais e para a Universidade Estadual de Montes Claros e outros 7,5% para serem usados prioritariamente para a criação e implantação de cursos superiores nos vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Tais percentagens estavam inseridas no percentual de 25% que a Constituição obriga os Estados a vincularem aos gastos com ensino, consoante o artigo 212, CF.

Ocorre que, mesmo tendo sido declarada constitucional a vinculação para as Universidades estaduais de Minas Gerais em 2009, passou a ser dominante o caso Uerj, julgado no mérito em 2014 (ADI 4.120, com o precedente da ADI 780, de 1993), sendo a interpretação das duas vinculações ao ensino analisadas de forma isolada, e não sistemática. É como se apenas o artigo 167, IV, tratasse de ensino, e não o §5º, do artigo 218 — foi apagada desta norma a palavra ensino, sendo lida apenas a palavra pesquisa.

A dependência de trajetória (path dependence) sobre esse tema pode ser constatada na ADI 6.275, pela qual se discutia Emenda Constitucional do Estado de Mato Grosso que havia vinculado até 2% de sua receita corrente líquida para a Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), bem como ampliado para 35% o montante a ser destinado pelo Estado ao ensino. O despacho liminar foi concedido pelo ministro Alexandre de Moraes em dezembro de 2019, e julgado o mérito em 2020. Diversos acórdãos foram mencionados para demonstrar a inconstitucionalidade, todos convergindo para a análise do artigo 167, IV, não tendo sido sequer referida a vinculação para o ensino prevista no artigo 218, §5º.

Nessa ADI 6.275 o STF declarou inconstitucional as vinculações à Unemat, vencido o ministro Edson Fachin, que não identificou impedimento constitucional na ampliação do financiamento do direito ao ensino, e o ministro Ricardo Lewandowski.

Não restam dúvidas sobre a constitucionalidade da vinculação de receitas orçamentárias para pesquisa, como a ocorrida em 1993, através da ADI 780, acerca da Faperj. O mesmo foi adotado em 2002, pela ADI 550, relatada pelo ministro Ilmar Galvão, acerca do Estado de Mato Grosso. Em 2010, a ADI 336 foi relatada pelo ministro Eros Grau, relativamente ao Estado de Sergipe. Em 2019 foi apreciada demanda semelhante quanto ao Estado do Espírito Santo, pela ADI 422, relatada pelo ministro Luiz Fux.

Não havendo dúvidas quanto à constitucionalidade da vinculação de receitas orçamentárias estaduais para a pesquisa, por qual motivo seria inconstitucional a vinculação para o ensino, considerando que ambas as atividades se encontram no mesmo §5º, do artigo 218, CF?

Pode-se pensar em duas hipóteses: 1ª) O STF entende que a vinculação para financiamento do ensino do artigo 218, §5º, está limitada pelo artigo 167, IV, que estabelece 25% para os Estados. Porém tal entendimento enfrentaria dois óbices: por se tratar de um direito fundamental, os Estados possuem autonomia federativa para vincular mais recursos para esse gasto, e não menos; e, mesmo assim, é plenamente reconhecido que não há limitação de gastos para a pesquisa, motivo pelo qual também não há para o ensino.

A 2ª hipótese envolve a palavra fomento, constante daquele parágrafo. Talvez o STF esteja interpretando que fomentar corresponde apenas a financiar, o que afastaria as Universidades, que não financiam, mas ministram o ensino. Essa seria uma interpretação restritiva da palavra fomento, que também possui o sentido de desenvolver, implementar, estimular. Interpreta-se como se o ensino superior não fosse ensino, ignorando o artigo 217, CF, sobre a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Nesse sentido, é constitucionalmente possível que verba orçamentária estadual seja vinculada ao desenvolvimento do ensino nas universidades públicas.

Logo, é constitucional a vinculação de verba orçamentária estabelecida pelos estados para o ensino por parte de universidades públicas, tal qual ocorre com a vinculação para a pesquisa, amparada no mesmo artigo 218, §5º, CF, esta já amplamente reconhecida pelo STF.

Em tempo: Esta análise faz parte do texto O artigo 167, iv (não-afetação), em 35 anos da Constituição de 1988, constante da obra coletiva denominada “35 anos da Constituição da República Federativa do Brasil”, organizada por Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Álvaro Ricardo de Souza Cruz, que será lançada no dia 04 de outubro no STF. Livro oportuno, que vale conferir na íntegra.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 29 de agosto de 2023.