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19/12/23

CONJUR: O STF e o princípio da simetria federativa nas Constituições de 1967 e 1988

Fernando Facury Scaff 

O princípio da simetria federativa acarreta a obrigatoriedade de que os entes federados internos — estados e municípios — adotem certos modelos estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil. Um exemplo: grande parte do processo legislativo é vinculado ao princípio da simetria, impedindo que haja estipulação diversa nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais. É nítido que isso reduz a autonomia federativa, impondo a adoção do modelo centralizado, nacionalmente estabelecido.

Onde está grafado o princípio da simetria federativa na Constituição de 1988? Em nenhum lugar, embora ele seja vastamente utilizado pelo Supremo Tribunal Federal em diversos julgamentos, vários dos quais analisados por Marcelo Labanca em seu livro Jurisdição Constitucional e Federação.

Artigo do professor José Levi do Amaral Júnior (Federalismo e repartição de competências: a afirmação das autonomias locais e a superação do princípio da simetria), aponta que a interpretação adotada pelo STF em certos julgamentos usou princípios e conceitos da Constituição de 1967, embora já estivéssemos sob a égide da Constituição de 1988, e isso condicionou sua interpretação nos momentos iniciais de sua vigência, transformando-se em precedentes, que passaram a ser citados recorrentemente e seguidos, consolidando posições normativas que não mais vigiam. Algo na linha do ditado popular o uso do cachimbo deixa a boca torta. Levi denomina isso de aplicação inercial da norma.

De fato, observando a Constituição de 1967, contata-se: “art. 188 – Os Estados reformarão suas Constituições dentro em sessenta dias, para adaptá-las, no que couber, às normas desta Constituição. as quais, findo esse prazo, considerar-se-ão incorporadas automaticamente às cartas estaduais”. Norma ainda mais enfática foi adotada pela Constituição de 1969: “art. 200. As disposições constantes desta Constituição ficam incorporadas, no que couber, ao direito constitucional legislado dos Estados”.

A Constituição de 1967 foi outorgada sob o peso do relógio, conforme relata reportagem da Folha de S.Paulo da época, e a Constituição de 1969 nem mesmo era uma Constituição, mas uma Emenda Constitucional outorgada em 1969 que alterou substancialmente a Constituição de 1967, a ponto de ser considerada uma nova Constituição (para essa análise, ver Manoel Carlos de Almeida Neto, O Colapso das Constituições do Brasil). Essas duas Constituições eram extremamente autoritárias e fazia sentido tais normas para cercear o federalismo, decorrente de seu perfil antidemocrático. Afinal, o federalismo expressa a democracia, permitindo que as pessoas se organizem de acordo com suas vontades, observadas as peculiaridades locais. É a possibilidade de se ter diversidade na unidade — quanto mais descentralização houver (um dos sentidos de federalismo), maior será o nível democrático de um país.

José Levi aponta que o STF decidiu de forma inercial diversas questões sobre o princípio da simetria, já sob a égide da Constituição de 1988, adotando entendimento que fazia sentido sob o autoritarismo das Constituições de 1967 e de 1969. Relata ainda que a partir da década de 2010 o STF passou a ficar mais sensível às autonomias locais. Penso que isso se tornou ainda mais destacado durante a pandemia.

Em paralelo, registro que já havia observado situação semelhante, igualmente ocorrida com o STF, quando escrevi um texto publicado em 2004, cujo título já indica um paradoxo: Quando as Medidas Provisórias se transformaram em Decretos-Lei. Afinal, se as medidas provisórias foram criadas na Constituição de 1988, como poderiam ter se transformado em decretos-lei, que deixaram de existir como produção normativa ao fim da Constituição de 1969?

Resposta: no julgamento do RE 146.733-9-SP, realizado em junho de 1992, relatado pelo ministro Moreira Alves. Discutia-se, dentre outras questões, se o princípio da legalidade tributária estaria sendo respeitado por meio da edição de medidas provisórias. Consta do voto condutor: “Não há razão para que, em face da medida provisória, que nada mais é do que modalidade de Decreto-lei, sem as restrições quanto ao seu objeto, constantes da Emenda Constitucional nº 1/69, que se passe a entender que a mesma vedação (‘exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça’), agora constante do art. 150, I (também integrante da disciplina do sistema tributário nacional), mudou de sentido, para passar a exigir, nesses casos, lei em sentido formal e não, apenas, em sentido material”. O erro é palmar, pois são institutos completamente diferentes, construídos sob regimes políticos opostos.

A partir dessa decisão passaram a ser aceitas as medidas provisórias como instrumentos para a majoração de tributos, a contrário senso do regime democrático adotado em 1988. Posteriormente a Emenda Constitucional 32, de 2001, alterou o texto para torná-lo mais preciso em diversos pontos, afastando eventuais dúvidas.

As duas situações – Princípio da Simetria Federativa e o uso das Medidas Provisórias como se fossem Decretos-lei — foram interpretadas pelo STF com os olhos voltados ao texto da Constituição anterior, de 1967/69, embora já estivesse sendo aplicada a Constituição de 1988.

Possivelmente isso se repita em outros âmbitos da interpretação jurídica, inclusive no STF. É preciso ter cautela com o uso dos precedentes, o que é vastamente usado pelo Supremo de forma muitas vezes imprecisa.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 19 de dezembro de 2023.