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01/02/22
Por Fernando Facury Scaff*
É possível serem realizados gastos sigilosos em uma república? Dentre outras características, sabe-se que transparência e publicidade são pressupostos republicanos de todos os atos governamentais. Publicidade se equipara a um alto-falante, pelo meio do qual se divulga um fato — um vendedor com um megafone, ao convidar as pessoas a entrarem em sua loja pratica publicidade. Transparência corresponde à vitrine da loja, por meio da qual se pode ver o que nela existe.
Nossa Constituição estabelece uma estrutura republicana de governo em suas linhas gerais, muito embora algumas emendas constitucionais tenham deturpado o modelo, em especial as que introduziram as emendas parlamentares, pois acabaram por privatizar recursos que são públicos, fulanizando o uso do dinheiro público para os parlamentares eleitos.
Algumas vezes a prática governamental também se mostra pouco republicana, como pode se ver tanto no orçamento secreto (que ocorre à margem das normas constitucionais), quanto no uso do sigilo público, objeto deste texto.
Nossa Constituição, desde o texto originário, admite que seja imposto sigilo a alguns atos públicos, conforme prescreve no art. 5º, XXXIII: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
Observe-se com atenção a parte final do texto, e na conjunção aditiva utilizada, pois permite a atribuição de sigilo às informações que sejam, ao mesmo tempo, imprescindíveis à segurança da sociedade e também à do Estado.
Esta possibilidade é correta e deve ser compreendida como exceção, pois a transparência e a publicidade são a regra em um Estado de Direito. Imaginemos um plano de defesa nacional, envolvendo hipótese de invasão das fronteiras brasileiras por forças armadas inimigas – a necessidade de sigilo é óbvia, pois se trata da defesa do Estado e da sociedade. Outras possibilidades poderiam ser imaginadas, sempre contendo a ideia de sigilo de gastos ou de atos que sejam fundamentais à defesa do país e também da sociedade.
Esse assunto é regulado pela Lei 12.257/11, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI) e regulamentada pelo Decreto 7.724/12.
O art. 23 da Lei estabelece como exceção a possibilidade de tornar sigilosa a informação em algumas hipóteses, determinando prazos máximos de sigilo: grau ultrassecreto, 25 anos; grau secreto, 15 anos; e grau reservado, 5 anos.
Existe ainda um artigo na Lei que foge completamente ao mandamento constitucional, assinalando a possibilidade de extensão maior de prazo, de até 100 anos, assim redigido: “art. 31 — O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. §1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I — terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”.
Observe-se que tal preceito é completamente desconectado do mandamento constitucional, que menciona que a exceção à publicidade e à transparência de informações deve ocorrer apenas em casos imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado. Tudo indica sua inconstitucionalidade, embora, até a presente data, o STF não a tenha declarado – ou seja, em linguagem comum, tá valendo…
Essa específica exceção do art. 31 da Lei 12.257/11, flagrantemente inconstitucional, vem sendo usada rotineiramente pelo atual governo.
Foi decretado sigilo de 100 anos para a informação sobre o cartão de vacinação do atual Presidente. Vou repetir: 100 (cem) anos! Por qual razão deve-se aguardar um século para se ter notícia se o Presidente se vacinou ou não? No que isso é imprescindível para a segurança da sociedade e do Estado, conforme determina a norma constitucional?
No mesmo sentido, foram decretados 100 anos de sigilo para os registros de acesso dos filhos do atual presidente ao Palácio do Planalto. Qual a razão desse século de intervalo e no que isso protege a sociedade e o Estado?
Para esses dois casos existe o art. 24, §2º, da Lei: “As informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas (5 anos) e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição”. Cabe estabelecer 100 anos de sigilo sobre esses atos ou bastaria o período do mandato, conforme determina esta norma?
Também foram aplicados 100 anos de sigilo ao processo administrativo no qual foi analisada a conduta do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que, mesmo sendo general do Exército na ativa, participou de atos políticos amplamente divulgados nas redes sociais, o que é proibido pelo regulamento disciplinar do Exército (), que decidiu não o punir. Mantida essa regra, só no longínquo ano de 2121 é que a verdade dos autos será revelada.
Por outro lado, processos que deveriam se manter sigilosos foram divulgados nas redes sociais. A íntegra de um inquérito sigiloso da Polícia Federal a respeito de um ataque ao sistema interno de urnas eletrônicas do TSE, ocorrido em 2018, foi divulgado nas redes sociais pelo presidente da República no dia 4 de agosto de 2021 — e, segundo consta, com informações distorcidas a respeito de suas conclusões. Sete ministros do TSE pediram abertura de inquérito no STF para apuração da responsabilidade do Presidente pela divulgação desse documento sigiloso. O ministro Alexandre de Moraes conduz o inquérito e o presidente, a despeito de ter se comprometido a prestar os depoimentos necessários, vem adiando. Nova crise institucional à vista.
O abuso do sigilo não ocorre apenas pelo atual presidente, embora ele tenha exacerbado essa prática. Era comum a atribuição de sigilo aos gastos com cartões de crédito da Presidência pelos ex-presidentes Lula e Dilma; porém não se tem registro de nada que se compare ao que hoje se pratica em termos de ocultação dos atos de governo — inclusive no abuso sigiloso dos gastos com cartão de crédito pago com nosso dinheiro.
É curioso o discurso do atual presidente, que sempre recebeu salários do Poder Público, mas não se considera um servidor público. Em 1977 formou-se pela Academia Militar de Agulhas Negras, serviu o Exército até 1988, foi vereador pela cidade do Rio de Janeiro entre 1989 e 1991, foi deputado federal por sete legislaturas (28 anos) e é presidente da República há quase quatro anos. Parece óbvio que servidores públicos recebem dinheiro público e devem satisfações ao público, que só pode conhecer a verdade dos fatos se eles forem divulgados.
Como conhecer a verdade, com 100 anos de sigilo imposto pelo governo para seus próprios atos? Tudo isso me lembra aquele verso da música do Renato Russo: festa estranha com gente esquisita…
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 01 de fevereiro de 2022.