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05/09/22
Por Fernando Facury Scaff*
É antiga a busca de estados e municípios por ampliar sua arrecadação através da instituição de múltiplas taxas de fiscalização, muitas das quais sem o devido amparo constitucional. Normalmente o valor cobrado é individualmente baixo, o que faz com que não raro os contribuintes prefiram assumir o custo e repassá-lo aos preços, do que enfrentar uma batalha judicial. Ocorre que, quando se assusta, surge uma nova taxa, e mais outra, e mais outra, em uma espiral sem fim.
Uma dessas recentes taxas foi instituída no Município de Guarulhos, através da Lei 8.014, de 27 de maio de 2022, denominada de Taxa de Preservação Ambiental (TPA), decorrente do poder de polícia municipal em matéria ambiental, “incidente sobre o trânsito de aeronaves civis que sobrevoarem a cidade, em atividade de decolagem ou de aterrissagem do Aeroporto” (art. 2º). As aeronaves militares estão isentas do pagamento (art. 6º). Ou seja, se você decola ou aterrissa em São Paulo através do Aeroporto de Guarulhos, deve estar atento a isso.
Não há dúvidas que o transporte aéreo é poluidor, mas será que essa taxa pode ser cobrada pelos municípios? Existem muitas peculiaridades na norma aprovada, que demandariam vasta argumentação, mas serei sintético.
A despeito da base de cálculo ser o custo estimado do exercício do poder de polícia em matéria ambiental (art. 4º), foi desde logo estipulado que o valor a ser pago corresponde a três UFGs (Unidades Fiscais de Guarulhos) para cada tonelada da aeronave (art. 5º), considerado o peso total no momento anterior à decolagem, incluindo combustível, carga, passageiros e bagagens (art. 5º, §1º).
Quem deve pagar a taxa são as pessoas físicas ou jurídicas operadoras do voo, “cujas aeronaves civis sobrevoarem o Município de Guarulhos, em atividade de decolagem ou de aterrissagem” (art. 3º).
Parece claro que, na verdade, quem pagará essa taxa será o passageiro. Segundo informações disponíveis na mídia, um Boeing 767-300 tem peso estimado de 160 toneladas na decolagem, e pagará R$ 1.874,95. Considerando os 221 assentos, o custo por passageiro será de R$ 8,48. É pouco em face do atual preço das passagens aéreas, o que desestimula a litigância, conforme exposto.
A destinação dos recursos é bastante curiosa, pois “serão destinados exclusivamente ao custeio administrativo e operacional de projetos de cunho ambiental que objetivem a proteção, preservação e conservação do meio ambiente, de projetos de saúde pública, bem como para programas de coleta, remoção e disposição dos resíduos sólidos do Município”, visando a redução dos danos decorrentes “do trânsito de aeronaves civis que sobrevoarem o Município de Guarulhos, em atividade de decolagem ou de aterrissagem” (art. 8º). Aqui há um raciocínio tributariamente desconcatenado, pois, uma coisa é a poluição das aeronaves, e outra coisa é a coleta do lixo na área do Município, o que afasta qualquer “referibilidade” referente à alegada fiscalização.
Surgem diversas perplexidades na leitura da norma, tais como: (1) pode o município taxar esse tipo de atividade regulada pela União através da Anac? (2) É possível instituir esta espécie de subsídio cruzado através de taxas de fiscalização, pois quem decola ou aterrissa pagará pela coleta de resíduos sólidos (lixo) em todo o Município de Guarulhos, mesmo naquelas áreas municipais que sequer ouvem o barulho das aeronaves? (3) Que tipo de fiscalização será efetuada pelo Município no caso em apreço? Ou essa taxa é declaradamente arrecadatória, o que é vedado?
À luz do que determinam a legislação, a jurisprudência e a doutrina, não haverá dúvida em afirmar “não” a todas as perguntas acima efetuadas. Excetua-se recente decisão do STF, que instituiu um verdadeiro zig-zag em sua jurisprudência em matéria de taxas de fiscalização, conforme se verificou na questão das taxas minerárias.
Em síntese: trata-se de um tema juridicamente importantíssimo, mas difuso, porque o impacto financeiro nos “contribuintes de fato” é muito pequeno, pois fracionado em múltiplas unidades, o que desestimula a discussão judicial. Ocorre que, se tal norma for validada, todos os mais de 5 mil municípios instituirão algo semelhante, seja na aterrisagem ou na decolagem, ou no singelo ato de as aeronaves “atravessarem o espaço aéreo municipal”.
O receio é acontecer como relatado por Júlio Cortázar, fantástico escritor argentino, em seu conto A Casa Tomada, ao dizer através de um de seus personagens: “Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos”. A cada dia algo cada vez mais considerado “etéreo”, como a “proteção da ordem jurídica”, é deixada de lado em nome da praticabilidade ou da boa convivência, e nossa Constituição vai sendo tomada, passo a passo.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 22 de agosto de 2022.