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28/11/22
Por Fernando Facury Scaff e Gabriel Hercos da Cunha
Mário de Andrade escreveu em seu livro Macunaíma que os males do Brasil eram “pouca saúde e muita saúva”. Hoje deve-se acrescer a imposição de esdrúxula tributação de estados e municípios sobre diversos setores econômicos. Anteriormente já foi abordada a questão das taxas estaduais sobre mineração e sobre o setor energético, e a tributação municipal sobre a infraestrutura, como no caso do aeroporto de Guarulhos. Tratemos agora do agronegócio, responsável por cerca de 23% do PIB brasileiro entre 1995 e 2021.
A atual “moda tributária” dos estados é a criação de fundos visando aumentar a tributação, com um aparente apelo social. O estado de Mato Grosso do Sul criou o Fundersul; o de Mato Grosso criou o Fethab, e o de Goiás acabou de aprovar o Fundeinfra na semana passada. O estado do Paraná está tentando criar o FDI-PR com o mesmo escopo.
Tais fundos têm em comum sua inconstitucionalidade.
Observemos o caso do estado de Goiás, que possui um desenho curioso. A construção jurídica aponta que os recursos arrecadados não irão aos cofres do estado, mas aos cofres de uma autarquia estadual (Goinfra) – que é do próprio estado! Esta singela descrição já demonstra um drible financeiro, pois o que iria aos cofres do Tesouro do estado, vão para os cofres de uma autarquia do estado – o que se confunde, pois comandada pelo mesmo Poder Executivo e submetida ao mesmo Poder Legislativo de Goiás.
Qual a razão desse drible? A resposta está no artigo 5º do Fundeinfra, que estabelece o pagamento de uma contribuição de 1,65% do ICMS como condição para a fruição de (1) incentivo ou benefício fiscal; (2) de regimes especiais de exportação e (3) em algumas hipóteses de substituição tributária. Existem diversas irregularidades nesta norma.
Por um lado, o estado concede o benefício fiscal, mas a autarquia estadual cobra uma contribuição para que haja o gozo desse incentivo, reduzindo indiretamente o montante, o que infringe, dentre diversas normas, a Súmula 544 do Supremo Tribunal Federal.
Por outro lado, estão sendo tributadas as exportações, o que é igualmente inconstitucional, pois estas são protegidas pela imunidade constitucional. Aliás, os Estados sequer devolvem aos exportadores o ICMS devido na cadeia exportadora, e ainda querem aumentar a tributação de forma oblíqua, através desse “pedágio” batizado de contribuição.
Além disso, existe ainda a sobre oneração das operações com substituição tributária, o que revela outra gama de problemas.
O fato é que a análise desta questão jurídica não será resolvida tão somente com o foco na relação Fisco-contribuinte. É necessário olhar toda a operação e compreender o drible financeiro que está sendo aplicado, distorcendo o direito positivo, que se torna mais claro quando se observa o argumento que os Fiscos estaduais utilizarão em sua defesa. Vamos tentar antecipar os principais argumentos.
Existe a impossibilidade de cobrança do ICMS nas exportações de mercadorias para o exterior (artigo 155, parágrafo 2º, X, “a”, da Constituição Federal). Ocorre – dirão os defensores do Fisco – que a cobrança que está sendo imposta não se refere ao ICMS, mas a uma contribuição arrecadada para uma autarquia, logo, a norma constitucional não foi vulnerada. Tal argumento é falso, em face do drible financeiro acima exposto. Cobra-se uma contribuição pretensamente voluntária como condição para o exercício de um direito que é para ser exercido de forma incondicional.
Outro possível argumento do Fisco seria que os incentivos fiscais já concedidos permanecerão intocados, sendo esse percentual de 1,65% a ser recolhido ao Goinfra (autarquia estadual) algo diverso, destinada ao desenvolvimento dos estados. Este seria outro argumento falso, em face do drible financeiro apontado – o que se está fazendo é reduzindo o montante do ICMS desonerado através de outra estrutura financeira, sem o direto enfrentamento da questão.
O exemplo goiano se repete, grosso modo, nos demais estados mencionados, além de também estar presente em outros estados que se utilizam de expedientes semelhantes atingindo diversos setores, como em São Paulo, o que foi analisado em conjunto com Thales Falek.
É óbvio que estas mal traçadas linhas não esgotam o assunto, que requer análise mais detalhada – até mesmo porque os argumentos dos Estados seguramente serão melhores que os acima cogitados. Porém, em um primeiro olhar, o problema central está no Convênio Confaz ICMS 42/16, que dá amparo a todos esses Fundos estaduais, e o STF vem se esquivando de analisar a matéria, sob o argumento que se trata reanálise de provas (ARE 1.344.693/RJ) ou análise de legislação local (RE 1.392.557/SP). Até onde se verifica, a única decisão que enfrenta o Convênio ICMS 42/16 é o RE 1.394.084/SP, decorrente de uma ADI proposta pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) contra a legislação estadual, que ainda tramita no STF. Todas as decisões mencionadas são do ministro Alexandre de Moraes.
A causa desse movimento financeiro dos estados e municípios é o fato de estarem sendo fortemente prejudicados pela União há vários anos, porém isso é tema para outra coluna.
Nesse sentido, é adequado que as entidades empresariais se unam e se organizem, buscando atingir a fonte dessa praga tributária que assola o país, que é o Convênio Confaz 42/16, de forma mais agressiva que as velhas saúvas do Mário de Andrade.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Gabriel Hercos da Cunha é advogado, especialista em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário, tem MBA em Agronegócios pela USP/Esalq e é cofundador do Grupo de Estudos de Tributação no Agronegócio.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 28 de novembro de 2022.