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20/06/23

CONJUR: Os limites da regulamentação do uso dos precatórios pela AGU

Por Fernando Facury Scaff*

Já é sabido que a EC 113/21 ocasionou o efeito bola de neve nos precatórios federais, isto é, estabeleceu um subteto para seu pagamento anual, limitado ao que havia sido pago em 2016, sendo que o que ultrapassar esse montante deverá ser pago no ano seguinte, somado aos regulares precatórios anuais, sendo que tudo também estará limitado ao mesmo valor, e assim sucessivamente até 2016, quando esse mecanismo supostamente cessará.

A EC 113/21 também instituiu o mecanismo do §11 do artigo 100, com a finalidade de reduzir essa bola de neve, utilizando uma parte dos precatórios para compra de imóveis, quitação de dívidas tributárias e pagamento de outorga de delegações de serviços públicos. Com isso, esperava-se que o montante acumulado fosse sendo reduzido — o que só perifericamente poderia ocorrer, pois o montante acumulado é enorme, e são pequenas as possibilidades para seu uso.

Ocorre que o sistema falhou quando veio a ser testado. A despeito de constar do §11, do artigo 100, CF, ser “facultado ao credor, (…), com autoaplicabilidade para a União”, a utilização de precatórios federais para as finalidades descritas, a União não permitiu seu uso no caso da privatização de diversos aeroportos, dentre eles o de Congonhas, em São Paulo.

No último dia 15 de março, a AGU revogou a Portaria 73/22, que regulamentava os procedimentos para uso de precatórios federais nas hipóteses previstas no §11 do artigo 100, CF. Está sendo disponibilizada para consulta pública até o dia 24/6/23 a minuta do texto de uma nova Portaria.

Eis que surge uma dúvida preliminar: quais os imites da regulamentação, em face da determinação constitucional de autoaplicabilidade para a União, para a utilização de precatórios nas finalidades mencionadas no §11?

Publicidade oficial nos dá conta que, dentre as novidades, haverá maior transparência — o que é positivo.

Por outro lado, consta também que cada órgão público deverá estabelecer em edital ou outro ato normativo, as “condições e limites para aceitação dos precatórios”. Ora, se é norma constitucional que expressamente menciona ser facultado ao credor a utilização dos precatórios, é necessário constar de edital para ser aceita essa forma de pagamento? Se não constar, não poderá ser utilizada? Não me parece que esta norma constitucional seja condicional, como quer a Portaria regulamentadora (artigo 2º, §§5º e 6º), o que ultrapassa os limites de regulamentação.

Do mesmo modo consta que também deve vir a ser estabelecido “um limite global anual” para seu uso, regra inadequada, pois limita fortemente seu uso, driblando a norma constitucional que se inicia com a expressão: “é facultado ao credor (…) a utilização de precatórios…”. Quer-me parecer que esta limitação sugerida na minuta de Portaria não favorece o credor de modo algum.

O mais curioso ocorre quando é mencionado que “o órgão ou entidade pública deverá exigir garantia para “resguardar dos riscos de inexecução dos precatórios” (artigo 20). Aqui o entendimento se torna mais complexo, pois, se o devedor é o Poder Público, e é também quem vai receber os créditos por força de mandamento constitucional, trata-se de “encontro de contas” (artigo 4º, VIII), não havendo risco de inexecução dos créditos! Ou será que a União não acredita que vá pagar os precatórios, por isso está criando normas para sua aceitação condicional?

Aliás, o artigo 9º, II, “b” da minuta de Portaria segue essa linha de suspeita de pagamento, pois mesmo para quitação de tributos federais, a compensação fica pendente de “condição resolutória de ulterior disponibilização financeira do recurso pelo Tribunal respectivo” — será enorme o desencontro de contas em face da diferença entre os juros e a correção monetária aplicáveis aos créditos tributários e aos débitos precatoriais.

Outra extrapolação regulatória ocorre no artigo 19, I, que estabelece que o órgão ou entidade que deverá aceitar o precatório decidirá sobre a efetiva admissão do encontro de contas. Se tal norma for apenas para conferir valores, não haverá problemas, mas, tal como redigido, cria a possibilidade de vir a ser criado outro empecilho, que será a decisão de aceitar ou não o encontro de contas, o que ultrapassa os limites regulatórios.

Enfim, esta portaria, caso aprovada como hoje se apresenta sob a forma de minuta, trará mais incerteza e insegurança, em face desses aspectos, dentre outros, que podem gerar mais judicialização.

Se a ideia é de apenas regular a matéria, urge revisar esses tópicos e cumprir a Constituição. Será tão difícil fazer isso?

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 20 de junho de 2023.