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19/02/24
Fernando Facury Scaff
Inicio com este texto uma série de cinco colunas a ser publicada quinzenalmente neste espaço na revista eletrônica Consultor Jurídico. Visam dar ao leitor um panorama da EC 132, que modificou substancialmente o sistema da tributação sobre o consumo no Brasil, aprovada em 20/12/2023, sob o governo Lula 3, com 37 páginas de inovações constitucionais, oriunda da reunião da PEC 110 à PEC 45, propostas sob o governo Bolsonaro.
Não se trata de uma análise exaustiva, que mereceria muitas páginas, quiçá um livro, mas uma simples visão geral sobre o que foi aprovado, com especial atenção para seus aspectos mais destacados.
Registra-se, à latere, que no bojo da PEC também foram feitas pequenas alterações no sistema de tributação sobre a propriedade, que serão também analisadas.
Não será tratado nestes textos a ampla reformulação do sistema financeiro de repartição das receitas federativas, por meio de diversos Fundos, fruto da EC 132.
A programação dos textos será: 1º) o que é um IVA dual: a CBS, o IBS, o impacto federativo e os princípios aprovados; 2º) as alíquotas e a base de cálculo; 3º) regimes específicos de tributação, o split payment e o cash back; 4º) o imposto seletivo, o Comitê Gestor (CG) do IBS e a fase de transição; e, por fim, o 5º) o pagamento dos saldos credores de ICMS, e a conclusão, que intitula todos os cinco textos, “um salto no escuro, com torcida a favor”.
Espero que os caros e raros leitores e leitoras tenham fôlego para essa série, que não é de streaming, mas se desenvolve quase que on line com os acontecimentos.
Introdução
A sociedade brasileira parece crer que a singela modificação normativa acarretará, por si só, a implementação de um novo e melhor sistema, alavancando as condições vida para todos.
Isso é bastante nítido quanto à matéria financeira e tributária, pois desde a promulgação da Constituição de 1988 foram alvo de incontáveis tentativas de modificação, com ou sem êxito. Isso demonstra que a Constituição surgiu sob o signo da eterna mudança, ou da perene insatisfação com a governabilidade do país por parte dos grupos que assumem o poder, em especial no âmbito da arrecadação e do gasto público, o que reflete o enorme conflito redistributivo encravado no país.
No âmbito financeiro muitas alterações ocorreram, como se vê, dentre outras:
(1) Na criação e sucessivas reedições da DRU (ECs 42, 56, 68, 93 e 126);
2) Na aprovação das Emendas Parlamentares Orçamento Impositivas (ECs 86, 100, 105 e 125);
(3) Na ampla modificação do sistema de precatórios (ECs 59, 94, 99, 113 e 114);
(4) Na aprovação do Teto de Gastos (EC 95);
(5) Na aprovação do Arcabouço Fiscal e revogação do Teto de Gastos (EC 126);
(6) Para tratar de forma diferenciada os gastos com Ciência e Tecnologia (EC 85);
(7) Modificações nos Fundos de Participação (ECs 55 e 84);
(8) Referente aos gastos sociais (EC 51 e 53); e
(9) Na criação e prorrogação por tempo indeterminado do Fundo de Combate à Pobreza (ECs 31 e 67).
Nesse sentido, a redistribuição do que foi arrecadado vem sendo implementada com diversos solavancos políticos, entre avanços e retrocessos.
No âmbito da reforma tributária muitas tentativas ocorreram, conforme os seguintes períodos presidenciais, sem êxitos substanciais: (1) Itamar: Comissão Ariosvaldo Mattos Filho; (2) FHC 1 e 2: PEC 175/95; (3) Lula 1: PEC 41/03 (transformadas em PEC 42 e PEC 44/03); (4) Lula 2: PEC 223/08; e (5) Bolsonaro: PEC 45/19, que encampou a PEC 110/19.
Sob o governo Lula 3, foi aprovada a PEC 45, tornando-se a Emenda Constitucional 132/23. Registre-se que o presidente Lula e o ministro Fernando Haddad investiram seu capital político na aprovação da reforma, inclusive criando uma Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária para conduzir o processo, sob a direção do economista Bernard Appy, um dos redatores da PEC 45/19.
Aqui se configura uma alteração na forma de arrecadar, que se espera acarrete mais justiça fiscal na arrecadação, embora seja muito difícil que isso ocorra, pois foi centrada na tributação do consumo, de dificílima identificação de capacidade contributiva.
1 – O que é um IVA dual: a CBS, o IBS e o impacto federativo
O Brasil passará a ter um regime de IVA dual. Por IVA entenda-se Imposto sobre o Valor Agregado (alguns preferem usar a palavra Adicionado, o que não modifica a essência do que se analisa). O foco dessa modalidade de imposto é a ampla compensação do que tiver sido pago pelas empresas, em termos de débitos e créditos, abatendo-se o que foi pago em todas as etapas anteriores, com o que será pago na etapa econômica posterior. Por IVA dual, entenda-se uma peculiaridade federativa, pois serão dois impostos diferentes, submetidos à legislação correlata, cobrados por entes federativos distintos de forma concomitante.
No Brasil optou-se pela adoção de um sistema de IVA dual, através da cobrança de dois impostos distintos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), a cargo da União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a cargo dos 26 estados, dos 5.568 municípios e do Distrito Federal.
Ao lado desses dois impostos, foi também criado o Imposto Seletivo, a cargo da União, que deverá incidir sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar.
Pretende-se que esse sistema seja neutro e não cumulativo, vedada a concessão de incentivos e benefícios, exceto os “regimes diferenciados” previstos.
Sua cobrança será no destino, diversamente do que ocorre hoje com o ICMS e o ISS, e não integrará sua própria base de cálculo.
A legislação deve ser única aplicável em todo o território nacional, o que reduz a anterior competência tributária de estados e municípios, embora cada ente federativo possa fixar sua própria alíquota, que será a mesma para todas as operações – alíquota única e uniforme em cada ente federado, que somente poderá variar para baixo, respeitado o teto estabelecido.
De forma pouco técnica, existem diversos artigos que constam da EC 132 que não foram inseridos no corpo da Constituição, sequer no ADCT. Quem quiser compreender o sistema terá que analisar o texto da EC 132, mantido à margem da Constituição. Será sempre necessário ter cautela na indicação da norma, pois ora a referência será a um artigo da EC 132, e ora a um artigo da CF ou do ADCT.
A CBS é de competência da União, e para implantar o IBS foi dissolvida a competência tributária estabelecida pela Constituição de 1988, e que estava presente em todas as Constituições republicanas brasileiras, pois nelas estava consagrado como um princípio do federalismo fiscal atribuir competência tributária aos estados e municípios para instituir e cobrar duas de suas principais fontes de arrecadação: o ICMS e o ISS.
Sob a ótica federativa, as receitas públicas são repartidas em dois grandes grupos: repartição das fontes e repartição do produto. Pela repartição das fontes a Constituição atribui a cada ente federado o poder de estabelecer a própria arrecadação a partir da imposição tributária nela prevista, daí decorrendo o poder de os estados criarem múltiplas incidências para a tributação do consumo, os municípios o fazerem para a tributação dos serviços, e por aí vai.
Trata-se da competência tributária. A arrecadação decorrente da repartição do produto ocorre quando um ente tributante arrecada e transfere a outro parte do que foi arrecadado, surgindo daí que a União arrecada o Imposto sobre a Renda, mas o reparte em grande parte com estados e municípios através do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Com a EC 132 o federalismo brasileiro foi fortemente abalado, pois a repartição por fontes, a competência tributária, foi fortemente alterada, deixando de ser individual, isto é, para cada ente federado, e passando a ser considerada em seu conjunto.
Para usar uma metáfora, colocaram em um único balaio a totalidade de estados e municípios para que tratassem coletivamente de sua própria arrecadação em conjunto.
O que antes era individual, de competência de cada entre federado (mesmo sob limites nacionais), passou a ser coletivo, pois todos os entes federados internos devem trabalhar em conjunto para arrecadar o IBS para os 26 estados e o Distrito Federal, e os quase 5.568 municípios brasileiros. Não restam dúvidas que foi dissolvida a autonomia dos entes federados internos no âmbito arrecadatório.
Existem sérios debates sobre a constitucionalidade desse aspecto, pois o federalismo é cláusula pétrea da Constituição (artigo 60, §4º, I), e foi fortemente abalado. Nesse estágio do processo não se pode quantificar o impacto desse abalo, que inapelavelmente ocorreu.
Não se crê que o STF venha a intervir sobre esse aspecto, uma vez que as forças políticas atuais aprovaram maciçamente a PEC 132 – não apenas as que se encontram no Congresso, mas também o conjunto de governadores e uma enorme quantidade de prefeitos, sem contar o Poder Executivo Federal.
O federalismo fiscal foi modificado, mas não extinto. O texto da Constituição é claro ao impedir que não será objeto de deliberação sequer a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado (artigo 60, §4º, I).
De fato, olhando a partir do desenho jurídico aprovado — mas não testado e sequer projetado, à míngua de análises econômicas governamentais que tenham embasado a proposta — o federalismo foi fortemente abalado, mas não abolido. Houve uma gigantesca redução da autonomia dos entes federados internos na arrecadação pela fonte, mas espera-se que isso venha a ser compensado em face da distribuição do produto arrecadado — a conferir. O tempo dirá.
É bastante possível que governadores e prefeitos tenham feito um cálculo político considerando duas variáveis: (1) foram aprovados diversos Fundos para atenuar o impacto da forte redução de sua competência tributária em seus dois principais tributos, e
(2) também observaram os dilatados prazos para a efetiva implementação da reforma, que são necessários, pois nenhuma projeção de impacto financeiro foi apresentada pelo Poder Executivo Federal, que se valeu de cálculos formulados por fontes externas, muitos dos quais distorcidos. Considerando essas variáveis, estamos defronte a um salto no escuro, seja financeiro, à míngua de projeções econômicas, seja jurídico, pois a federação foi enfraquecida.
2 – Princípios
Diversos princípios foram inseridos pela EC 132, além de outros já existentes terem sido mantidos.
Foi disposto, como uma novidade, que, sempre que possível, a concessão de incentivos regionais considerará critérios de sustentabilidade ambiental e redução das emissões de carbono (artigo 43, §4º), o que se constitui em uma medida de proteção ambiental.
No mesmo sentido, foi inserido o §3º, ao artigo 145, prescrevendo o Sistema Tributário Nacional deverá observar o princípio da defesa do meio ambiente, o que inibirá diversas normas fiscais que incentivam a poluição, mesmo que de forma indireta, trazendo impactos econômicos no curto prazo, embora com benefícios à toda a população em médio e longo prazos.
O §3º do artigo 145 também consagra os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária e da cooperação.
Simplicidade é um desiderato que sempre deve ser perseguido, embora a forma adotada pela EC 132 já demonstre a dificuldade em implementá-la. O que poderia ser feito com muito menor impacto no sistema, foi realizado por meio de uma vastíssima alteração constitucional, que introduziu centenas de novas disposições tributárias na Constituição, acarretando complexidade o que, por consequência, gerará vasta judicialização.
Esse aspecto é perverso, e deveria desde sua gênese ter seguido o princípio da simplicidade, que foi consagrado no papel.
Transparência é sempre bem-vinda, pois permite que se veja com maior clareza o que está sendo cobrado, bem como em que está sendo utilizado o recurso arrecadado. Espera-se que seja efetivamente implementado, o que não é o procedimento habitual dos fiscos brasileiros.
Muito mais complexa é a proposta de implementar o princípio da justiça tributária, em especial no que se refere à tributação do consumo, que tende a ser igual para todos os consumidores, podendo variar em termos de seletividade, e não de progressividade.
Tal preceito deve ser lido em conjunto com o §4º do mesmo artigo 145, que determina que as alterações na legislação tributária devam buscar atenuar os efeitos regressivos, o que é usual na tributação do consumo.
A análise do princípio da justiça tributária requereria um vasto estudo específico, que não cabe no presente texto, em face de sua complexidade, mas, destaca-se que o debate deve perpassar sobre o que é individual (quanto cada qual paga) e o geral (quanto foi arrecadado, e seu uso em prol da sociedade), o que nos leva a discutir a matéria sob as óticas macro e microjurídica.
A justiça tributária deve ser analisada sob o prisma individual ou geral? É neste ponto que se encerra a complexidade do tema. De todo modo, é positiva a inserção deste princípio no Sistema Tributário Nacional, rogando-se que não se torne letra morta, com efeitos meramente retóricos, como sói acontecer com os princípios que estabelecem com vaguidade a proteção dos contribuintes.
Foram mantidos pela EC 132, com as necessárias remissões revisadas, a norma que determina o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, e o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte.
No artigo 156-A, foi estabelecido que o IBS será informado pelo princípio da neutralidade. Existem ao menos dois âmbitos para esse princípio. Um âmbito determina que não haja diferenciação entre as operações, de tal forma que a disputa concorrencial nos mercados não seja afetada em razão do regime de tributação adotado.
Isso busca impedir a guerra fiscal, dificultando a seletividade e a adequação à capacidade econômica dos contribuintes, e, inclusive vedando a concessão de incentivos fiscais estaduais e municipais muito usuais no sistema anterior, conforme o inciso X desse artigo.
Outro âmbito diz respeito à não-cumulatividade, a fim de permitir que todos os insumos ou mercadorias gerem créditos a serem compensados nas etapas econômicas seguintes.
Prevê-se que o IBS seja não-cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito ou serviço, com exceções: (a) para as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e (b) para as demais hipóteses previstas na Constituição.
Parece esdrúxula a ideia de que haja uma exceção da não-cumulatividade para os bens “de uso ou consumo pessoal”, mesmo que venham a ser delimitadas em lei complementar. O que seria um bem dessa natureza para uma tributação centrada em pessoas jurídicas? Ou a palavra “pessoal” constante do texto se refere às “pessoas jurídicas”?
De qualquer forma soa estranho que exista esse tipo de exceção, que abre a porta para práticas fiscais deletérias, realizadas no âmbito do ICMS, pelas quais foi postergado indefinidamente o direito de crédito de vários bens de uso e consumo, além de bens do ativo permanente, o que gerou acúmulo de créditos das empresas contra o Estado, que a EC 132 prevê seja devolvido, conforme será exposto adiante.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 19 de fevereiro de 2024.