Publicações

Compartilhar

04/03/24

CONJUR: Panorama sobre a EC 132: um salto no escuro, com torcida a favor (parte 2)

Fernando Facury Scaff 

Com este mesmo título iniciei uma série de textos para dar ao leitor um panorama sobre a EC 132, da reforma tributária. No anterior, abordei aspectos sobre (1) O que é um IVA dual: a CBS, o IBS e o impacto federativo e (2) os princípios que regem a matéria. Este é o segundo episódio desta minissérie, veiculado pelo “quase- streaming” desta ConJur.

III – Alíquotas
O complexo sistema de alíquotas requer uma análise mais detalhada, mesmo antes da edição das leis complementares necessárias, que ainda se encontram na fase antecedente da elaboração legislativa.

A alíquota base (denominada de referência) do IBS e da CBS será determinada por Resolução do Senado Federal (artigo 156-A, XII, c/c artigo 195, parágrafo 16, da Constituição), sendo que parcela da arrecadação do IBS será compartilhada entre estados e municípios.

Deve-se considerar que “cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica” (artigo 156-A, parágrafo 1º, V, da Constituição), embora haja uma determinação de que a alíquota da CBS “poderá” ser estabelecida por lei federal (artigo 195, parágrafo 15, da Constituição), o que certamente ocasionará muitas dúvidas, pois não foi utilizado o verbo “deverá”.

Deve-se considerar que a alíquota de referência, como o nome indica, é apenas um referencial para os estados e municípios, pois estes terão a possibilidade de as alterar em seu âmbito territorial, o que permitirá que cada qual dos 5.568 municípios estabeleça uma alíquota própria em sua arrecadação, além dos 26 Estados e do Distrito Federal (artigo 156-A, parágrafo 1º, V, da Constituição).

A partir dessa alíquota base existirão (1) regimes diferenciados, (2) regimes específicos e (3) regimes favorecidos de tributação (artigo 156-A, parágrafo 5º, I, “c”, e artigo 149-B, III, da Constituição), a serem regulados por lei complementar.

Alíquotas diferenciadas são previstas no artigo 9º, parágrafo 3º, da EC 132, que prevê redução de 100% (o que equivale a uma isenção, havendo a possibilidade de até mesmo se caracterizar como uma imunidade tributária) para bens como (1) produtos hortícolas, frutas e ovos; (2) serviços prestados por Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação sem fins lucrativos; (3) automóveis de passageiros, dentre outros.

Nesse sentido, o artigo 9º, parágrafo 1º, da EC 132, estabelece um regime diferenciado, com redução de 60% para algumas atividades, como (1) os serviços de educação; (2) os serviços de saúde; (3) o sistema de transporte público de passageiros metroviário e rodoviário, de caráter urbano, semiurbano e metropolitano; (4) medicamentos; (5) produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, e por aí vai.

O artigo 9º, parágrafo 12, da EC 132, determina outra diferenciação, com redução de 30% para a prestação de serviços de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, desde que sejam submetidas a fiscalização por conselho profissional.

Já os regimes específicos de tributação são regidos pelo artigo 156-A, parágrafo 6º, da Constituição, englobando diversas atividades, por exemplo: (1) combustíveis e lubrificantes; (2) serviços financeiros; (3) atividades cooperativas; (4) serviços de hotelaria e de parques de diversão; que serão analisados em outra coluna.

Além desses, existem os regimes favorecidos, como o da Zona Franca de Manaus – ZFM e das Áreas de Livre Comércio (artigo 92-B, caput, da Constituição).

Existe ainda a alíquota do Imposto Seletivo (artigo 153, VIII e parágrafo 6º, da Constituição), que terá caráter extrafiscal, o que indica percentuais punitivos para as atividades sobre as quais incidir, que será instituída por lei complementar, mas suas alíquotas poderão ser alteradas por lei ordinária, e, por conseguinte, por medida provisória. O Imposto Seletivo será objeto de coluna específica.

Foram criadas duas travas para essa alíquota de referência (artigo 130, parágrafo 3º, da Constituição), que serão analisadas em outra coluna.

IV – Base de cálculo
A base de cálculo do IVA dual brasileiro, composto pela CBS e pelo IBS, foi enormemente ampliada em face do que antes existia.

Tributavam-se as operações com bens e a prestação de serviços. Essas regências verbais, que designam uma ação do contribuinte, simplesmente desapareceram no texto aprovado. Constata-se mesmo que sequer existem verbos para designar a incidência, delimitando o poder de tributar.

A redação é a seguinte, para o IBS (artigo 156-A): “Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios”. E para a CBS (artigo 195, V): “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: V – sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar”.

Tal como redigido, o imposto (IBS) e a contribuição (CBS) incidirão sobre o bem ou o serviço, e não em decorrência de uma ação do contribuinte. Parece claro que isso é uma falha redacional, mas que poderá trazer enorme judicialização, à míngua de precisão terminológica.

O artigo 156-A estabelece que o IBS também incidirá sobre a importação de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos ou serviços, qualquer que seja a sua finalidade e não integrará sua própria base de cálculo nem a de vários outros tributos, e, sempre que possível, terá seu valor informado, de forma específica, no documento fiscal. E não incidirá nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita.

Consta ainda que não incidirá sobre as exportações (artigo 156,-A, parágrafo 10, III), assegurados ao exportador a manutenção e o aproveitamento dos créditos relativos às operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direitos ou serviços.

A sistemática deste preceito é peculiar, pois, ao mesmo tempo em que desonera as exportações do IBS, e, por via de remissão, da CBS (artigo 195, parágrafo 16), onera o setor de mineração e petróleo, estabelecendo que na extração, o Imposto Seletivo — IS será cobrado, por meio de uma alíquota máxima de 1% do valor de mercado do produto (artigo 153, parágrafo 6º, VII).

Além disso, a não incidência sobre as exportações é dependente de lei complementar (artigo 156-A, parágrafo 5º, III), que deverá dispor sobre diversos aspectos operacionais da matéria.

Em suma, a base de cálculo foi alargada e as alíquotas estão pendentes de maior definição, tudo isso sem que o governo tenha apresentado qualquer análise de impacto econômico ou financeiro. Todavia, como o texto já foi aprovado, considera-se que tenha sido dado um salto no escuro, mas com toda a torcida a favor, na esperança que dê certo.

Nas próximas colunas quinzenais outros aspectos serão detalhados, a fim de permitir maior compreensão do sistema aprovado.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 03  de março de 2024.