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03/04/24

CONJUR: Panorama sobre a EC 132: um salto no escuro, com torcida a favor (parte 4)

Fernando Facury Scaff 

Ao cansado leitor e leitora que acompanha esta série de textos, relembro que iniciei com este mesmo título uma análise panorâmica da EC 132. Os três primeiros já foram publicados (aqui o 1; aqui o 2; e aqui o 3), sendo este o quarto “episódio” desta minissérie veiculada pela ConJur. Só falta o último, daqui a 15 dias.

VIII — O Imposto Seletivo
Foi aprovada a criação de um Imposto Seletivo (IS) sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”, de competência da União (artigo 153, VIII).

À primeira vista parece algo bastante positivo, pois sua incidência corresponderá àquilo que na doutrina se identifica como imposto sobre externalidades, também conhecida pelo nome de excise tax ou tributo sobre o pecado — embora a denominação não esteja completamente adequada à descrição normativa proposta.

Este tipo de tributo é conhecido como imposto pigouviano, em homenagem ao economista britânico Arthur C. Pigou, que expôs seus fundamentos teóricos na primeira metade do século 20.

A ideia de Pigou se baseava na seletividade, tributando mais fortemente atividades que gerassem externalidades negativas, tais como poluição ou malefícios à saúde, e privilegiando externalidades positivas, como as que se referem a bens e serviços de primeira necessidade para a população.

Na origem discutia-se fortemente sua incidência sobre a renda e apenas lateralmente sobre o consumo, tendo havido intenso debate teórico acerca de sua mensuração. No Brasil, conforme redigido, atingirá apenas as externalidades negativas, e poderá incidir sobre diversas etapas do ciclo econômico.

Consta ainda que o IS:

1) não incidirá sobre as exportações (exceto sobre as de petróleo e de minério);
2) nem incidirá sobre as operações com energia elétrica e com telecomunicações;
3) incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço;
4) não integrará sua própria base de cálculo, embora integre a do ICMS, do ISS do IBS e da CBS;
5) poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos;
6) terá suas alíquotas fixadas em lei ordinária, podendo ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem;
7) e na extração de petróleo ou de minério, o imposto será cobrado independentemente da destinação (o que permite a tributação na exportação), caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% (um por cento) do valor de mercado do produto.

Sua receita será compartilhada com estados e municípios.

É pernicioso que o IS integre a base de cálculo de outros tributos, ou seja, será um tributo que incide sobre outros o que já ocasionou muita discussão judicial (vide, por todos, o debate sobre o ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, e as teses filhotes).

Além disso, como se fosse pouco, o IS ainda “poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos”, o que abre um leque para superposições tributárias inadequadas e indevidas.

Embora conste que “incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço”, não ficou claro se no processo produtivo a incidência sobre um ou alguns insumos afastará a tributação sobre o produto final.

Observa-se ainda que a expressão “prejudicial à saúde ou ao meio ambiente” é amplíssima, permitindo sua incidência tanto sobre a cadeia econômica, quanto sobre o produto que dela resultar. Esse aspecto que pode gerar incontáveis judicializações.

Exemplo: a industrialização da cana pode resultar em etanol ou em açúcar. Caso venha a ser considerado o açúcar como um produto prejudicial à saúde, apenas ele será objeto do IS ou toda a cadeia produtiva?

Mais: será considerado prejudicial à saúde o produto “açúcar” ou os produtos que resultarem em bebidas açucaradas, como os refrigerantes? Ou incidirá sobre toda a cadeia econômica de industrialização dessas bebidas? Ou incidirá sobre a cadeia de produção do açúcar e também sobre a dos refrigerantes?

Isso não está claro. Espera-se que a lei complementar que venha para regulá-lo esclareça estes aspectos.

A tributação das exportações de minério e de petróleo se constituem em outro aspecto negativo desse imposto. Além disso, mesmo nas operações internas, a incidência do IS sobre derivados de petróleo, combustíveis e minerais acarretará o aumento do preço desses bens essenciais.

Observe-se o impacto desses produtos nas cadeias produtivas em geral, e aos consumidores. Não se trata da mesma dúvida acima exposta, usando o exemplo dos refrigerantes, pois mais ampla.

A incidência sobre minerais em geral é relevante, pois basta olhar ao redor e ver que nosso quotidiano está repleto deles, desde os chips do computador e celulares, até a areia, cimento e tijolos das construções que nos abrigam.

Tudo isso será impactado, independente de se tributar o produto ou o processo produtivo. O mesmo se pode dizer sobre os produtos derivados de petróleo, que alcança inclusive os plásticos.

Independentemente do debate acima exposto, por si só extremamente preocupante, existe outro, específico sobre petróleo, relativo aos combustíveis fósseis. Há quem defenda que é imprescindível estabelecer a incidência do IS sobre esses produtos, pois perniciosos ao meio ambiente, devendo o Brasil aderir ás boas práticas internacionais.

Não se pode contestar esse argumento, sob pena de se negar a ciência, mas, no âmbito tributário, o que fazer com a Cide-Petróleo, que já cumpre essa função, inclusive destinando os recursos arrecadados para gastos de preservação ambiental?

Não foi previsto pela EC 132 a hipótese de que, incidindo a Cide, não incidiria o IS, ou vice-versa. Haverá dupla incidência, com a mesma finalidade.

Seguramente haverá aumento de preço que implicará diretamente nos custos e impactará na inflação. Cabe lembrar que o IS terá em sua base de cálculo o IBS e a CBS, repetindo a perversa dinâmica de tributo sobre tributo, já vastamente contestada, além de ser cumulativo, isto é, não abater o valor que foi pago referente às operações anteriores.

IX — O CG (comitê gestor) do IBS
Dissolvida a competência tributária antes estabelecida pela Constituição para os estados, Distrito Federal e municípios individualmente instituírem e cobrarem tributos sobre o consumo e sobre a prestação de serviços, a EC 132 criou um Comitê Gestor do IBS, a ser regulado por lei complementar (artigo 156-B)

O CG é composto por 54 delegados, de forma paritária, sendo (artigo 156-B, §3º): (1) 27 para representar os 26 estados e o Distrito Federal, e (2) 27 membros para representar os 5.568 municípios e o Distrito Federal, dentre os quais: (2.a) 14 membros com base nos votos de cada município, com valor igual para todos, e (2.b) 13 membros com base nos votos de cada município, ponderados pelas respectivas populações.

As deliberações do CG serão aprovadas se obtiverem cumulativamente os votos: (1) em relação ao conjunto dos estados e do Distrito Federal: (1.a) da maioria absoluta de seus representantes; e (1.b) de representantes dos estados e do Distrito Federal que correspondam a mais de 50% da população do país; e (2) em relação ao conjunto dos municípios e do Distrito Federal, da maioria absoluta de seus representantes (artigo 156-B, §4º).

O CG tem competências administrativas para: (1) editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; (2) arrecadar o IBS, efetuar as compensações e distribuir federativamente o produto da arrecadação e (3) decidir o contencioso administrativo.

O desenho jurídico aponta para três funções: regulamentar de maneira uniforme o IBS em todo o território nacional, o que é um reflexo da perda de autonomia dos entes federados; funcionar como câmara de compensação e distribuição do que vier a arrecadado pelo IBS; e criar normas para que o contencioso administrativo seja solucionado, embora a “a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial” tenham sido mantidas individualmente para cada ente federado (artigo 156-B, §2º, V).

Foi criada uma figura jurídico-administrativa peculiar para o CG (artigo 156-B, §2º), que é a de “entidade pública sob regime especial”, que corretamente “terá independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira”, apontando, sob o figurino jurídico usual, para uma autarquia, à semelhança das agências reguladoras.

O CG não terá participação da União, porém é previsto que a administração tributária federal poderá com ele compartilhar informações fiscais relacionadas ao IBS e a CBS visando harmonizar normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos (artigo 156-B, §6º), podendo implementar soluções integradas para administração e cobrança desses tributos (artigo 156-B, §7º), inclusive integrando o contencioso administrativo mediante lei complementar (artigo 156-B, §8º).

A lei complementar também regulará a forma de controle externo do comitê gestor (artigo 156-B, §2º, IV) que será exercido pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. Os respectivos tribunais de contas estaduais, e os municipais (municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo) serão os responsáveis pelo controle externo, em conjunto com as assembleias legislativas e as câmaras municipais, caso outro mecanismo não vier a ser desenhado para exercer essa função.

X — A fase de transição
A EC 132 prevê um cronograma para que o sistema entre em vigor. Pela absoluta falta de estudos de impacto econômico feitos pelo governo, inicia-se com um período de testes, no qual se pretende ajustar eventuais impropriedades no sistema — o que certamente levará a outras alterações constitucionais e legais.

O artigo 125 e seguintes do ADCT passaram a dispor sobre o processo de transição tributária entre os sistemas, que desta forma pode ser sintetizado:

Em 2026 o IBS passará a ser cobrado pela alíquota de 0,1% (um décimo por cento) e a CBS à alíquota de 0,9% (nove décimos por cento), compensando-se o que tiver sido recolhido com o Pis e a Cofins (art. 125, ADCT);
A partir de 2027 será cobrado o IS (art. 126, I, “b”, ADCT) e a CBS, sendo extintos o PIS e a Cofins, e. As alíquotas do IPI serão reduzidas a zero, exceto para fins do caráter protetivo da Zona Franca de Manaus, sem que incida de forma cumulativa com o IS (art. 126, ADCT).
Entre 2027 e 2028 o IBS será cobrado à alíquota estadual de 0,05% (cinco centésimos por cento), além de igual percentual da alíquota municipal, sendo reduzida a alíquota da CBS em 0,1 (um décimo de ponto percentual) (art. 127, ADCT);
De 2029 a 2032 as alíquotas do ICMS e do ISS serão reduzidas proporcionalmente (art. 128, ADCT);
A partir de 2033 serão extintos o ICMS e o ISS (art. 129, ADCT).
O Senado ficou incumbido de fixar, para todas as esferas federativas, as alíquotas de referência do IBS e da CBS, de tal modo que compense a redução dos tributos existentes, e que estes irão substituir (artigo 130, ADCT).

Foram criadas duas espécies de trava financeira para evitar o aumento da carga tributária com esses tributos.

No âmbito da União, foi estabelecido que a alíquota de referência da CBS venha a ser reduzida em 2030, caso a média da receita-base federal em 2027 e 2028 exceda o teto de referência da União (artigo 130, §§3º e 4º, ADCT).

Para o âmbito nacional, envolvendo tanto a CBS quanto o IBS, as alíquotas serão reduzidas em 2035 caso a média da Receita-Base Total entre 2029 e 2033 exceda o Teto de Referência Total (artigo 130, §§3º e 5º, ADCT).

Para que a arrecadação do IBS ocorra plenamente no destino, foi estabelecido um cronograma a vigorar entre 2029 e 2077, de tal modo que, paulatinamente, essa modificação seja efetivamente implementada (artigo 131, ADCT).

Esse longuíssimo prazo revela, mais uma vez, a falta de planejamento da reforma tributária aprovada, pois é inaceitável que uma das características básicas do IVA só venha a ser concluída 54 anos após sua aprovação. Adiar não é planejar, é empurrar o problema para as próximas gerações, a fim de obter um atual consenso para aprovação.

Foram estabelecidos diversos prazos para o encaminhamento de projetos de lei pelo Poder Executivo da União ao Congresso, contados a partir da aprovação da EC 132 (artigo 18 da EC 132, texto não encartado na Constituição): 1) em até 90 dias, para reforma da tributação da renda; 2) em até 180 dias, para as leis complementares mencionadas na EC 132; 3) e até 90 dias, para a tributação da folha de salários.

No quinto e (espero) último episódio, tratarei do pagamento dos saldos credores do ICMS, das alterações efetuadas no sistema de tributação do patrimônio e concluirei essa (longa) minissérie.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 1º de abril de 2024.