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07/02/22

CONJUR: Para pensar grande é preciso ultrapassar o senso comum

Por Filipe Coutinho da Silveira

No último dia 27, o jornal Folha de S.Paulo publicou artigo denominado “É preciso pensar grande no Brasil”, no qual o autor (Marcelo Knopfelmacher) se opõe às críticas veiculadas ao projeto de reforma do Poder Judiciário apresentado pelo candidato à Presidência da República, ex-juiz, Sérgio Moro. No que diz respeito às críticas formuladas sob o aspecto da Justiça Criminal, apresenta dois argumentos: 1) no âmbito criminal o endurecimento das penas e a execução após segunda instância seriam medidas salutares, pois, inibiriam a criminalidade que sempre leva em consideração a “relação custo/benefício de sua empreitada”; 2) as críticas sobre o fim da operação “lava jato” configurariam excessos, já que o reconhecimento da parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro decorreu de voto majoritário (não unânime), bem como que as decisões anuladas já haviam sido confirmadas pelo TRF-4 e pelo STJ, razão pela qual a decisão da Suprema Corte seria injustificável.

Com todo o respeito, os argumentos não impressionam.

Primeiro, simplificar a questão criminológica na lógica econômica, de custo/benefício, parece-nos algo superado. Trata-se de uma conveniência sedutora de utilização da lógica econômica para gestão do sistema de Justiça Criminal que procura esvaziar a complexidade das teorias criminológicas. Aliás, uma conhecida e contundente crítica é apresentada na tese de doutorado de Maurício Dieter, disponível — gratuitamente — no acervo digital da Universidade Federal do Paraná, especialmente porque, no Brasil, “políticas públicas de segurança ainda são reféns das novidades, não raro revestidas por slogans oportunistas que ocultam o mais pedestre utilitarismo” (Dieter, M. 2012).

Os críticos do programa de reforma da Justiça Criminal do candidato Sérgio Moro, ao sustentarem a seletividade social da proposta, parece não terem sido compreendidos pelo articulista, já que a lógica atuarial “constitui um desafio aberto ao Estado Democrático de Direito, porque ignora qualquer limitação normativa e supera mesmo as mais explícitas contradições internas” (Dieter, M. 2012). No fim das contas, trata-se de uma “reunião frouxa dos discursos e práticas que correspondem ao paradigma emergente para controle dos marginalizados nos Estados capitalistas ocidentais contemporâneos” (Dieter, M. 2012), daí porque os críticos do programa demonstram racionalmente que sua seletividade atingirá justamente os menos favorecidos.

Em segundo lugar, qualquer programa político e/ou jurídico que pretenda, no Brasil, insistir com a ideia de execução penal após o julgamento em segunda instância nasce com sérios problemas de natureza normativa constitucional e convencional. Isso porque a Constituição da República é clara ao dispor que a presunção de inocência se estende até o trânsito em julgado (artigo 5º, LVII), o que também foi reforçado pelos recentes julgamentos do STF (ADCs 43, 44 e 54) que reconheceram a constitucionalidade espelhada do artigo 283 do CPP, rechaçando a ideia de execução antecipada da pena privativa de liberdade. O voto do ministro Marco Aurélio foi certeiro ao comentar o artigo 5º, inciso LVII: “A literalidade do preceito não deixa margem a dúvidas: a culpa é pressuposto da sanção, e a constatação ocorre apenas com a preclusão maior” (ADC 43/DF, Min. Marco Aurélio).

Também no âmbito convencional, a proposta não encontra melhor sorte, na medida em que a restrição da liberdade deve sempre obedecer as “causas e [nas] condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes” (artigo 7º, 2), presumindo-se a inocência do acusado (artigo 8º, 2) e, especialmente, que nenhuma interpretação da Convenção Americana de Direito Humanos pode permitir a supressão do “exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista” (artigo 29, a) ou “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes”(artigo 29, b). Se tudo isso já não bastasse, o inadimplemento de um tratado e/ou convenção não pode decorrer da invocação do Direito interno do Estado-parte (Convenção de Viena, artigo 27), bem como a interpretação de suas normas deve ocorrer de boa-fé, “segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade” (Convenção de Viena, artigo 31, 1). Em outras palavras, um programa dessa ordem, desconhece ou ignora, os programas constitucional e convencional que sustentam o Direito brasileiro, baseando-se, unicamente, em argumentos de natureza política, em nome de suposta e discutível “efetividade”.

Em terceiro lugar, é incompreensível o argumento que pretende justificar a violação da lei para alcançar a justiça. Não se nega que o Brasil sofre com problemas graves, de todas as ordens. Mas a história nos conta que permitir que o Direito seja substituído pela política produz gravíssimas desgraças (Rüthers, B. “La revolución secreta: del Estado de derecho al Estado judicial. Un ensayo sobre Constitución y método”. Madrid: Marcial Pons, 2020). A adoção de acrobacias metodológicas e doutrinárias com o objetivo de justificar a punição a qualquer custo —como tem ocorrido nos casos de importação de institutos incompatíveis com o direito brasileiro ou mesmo nas hipóteses de aplicação de uma teoria geral do processo civil ao processo penal —, ou para escolher um determinado juízo competente, tudo em nome de uma política punitiva, só leva à perda de autonomia do Direito, o qual passa a ser substituído pela genérica, polissêmica e alargada ideia sobre “combate à criminalidade”, ou seja, à degeneração do Direito.

É por isso que a crítica à operação “lava jato” ganha proporções escandalosas. Ora, no momento em que a Suprema Corte brasileira vem a ser chamada para, em Habeas Corpus, afirmar regras comezinhas sobre competência (verbi gratia, não existe juízo universal e competência não pode ser definida por critério temático — HC 193.276 AgR/PR) ou analisar questões públicas sobre a imparcialidade (HC 164.493/PR), verifica-se que alguma coisa está muito mal no processo penal, na medida em que nenhum filtro processual parece funcionar acertadamente. Esse diagnóstico pode ficar ainda mais evidente se considerarmos o grande número de Habeas Corpus impetrados perante as cortes superiores para tratar de furtos de água e outras insignificâncias, ao ponto do ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, ter apelado para que os membros do Ministério Público deixem de atuar como meros despachantes criminais. Esses dados evidenciam a sanha punitiva que tem envolvido à ideia de Justiça Criminal no Brasil, ou seja, o princípio que rege a avaliação dos casos penais deixou de ser normativo, transformando-se na ideia política de “combate à criminalidade”, à todo custo.

O “combate à criminalidade” torna-se, então, um superprincípio, comportando-se como a ideia de ordem concreta de Carl Schmitt para superar a Constituição de Weimar e permitir a consecução de determinados fins, por meio de uma cegueira seletiva que afasta o Direito quando incompatível com o projeto político.

São esses os motivos que permitem a concepção de que os direitos e garantias fundamentais constituem-se em inconvenientes formais que atrapalham à busca do “combate à criminalidade”. A partir de então, relativiza-se a análise de qualquer elemento fático e/ou normativo em busca de comunicar aquilo que se quer como conclusão. No ponto específico: o reconhecimento da parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro decorreu de “apertada votação” e da análise de provas ilícitas.

Argumentos dessa ordem afiguram-se superficiais, na medida em que revelam uma leitura que pouco contribui para o aperfeiçoamento ou crítica do que foi debatido. Em outras palavras, julgamentos não unânimes não perdem sua legitimidade. Ao contrário, são expressões da liberdade e do processo democrático. Assim, contribuem para a formação da norma-decisão que passa a ser composta não apenas com o voto vencedor, mas também pelos votos vencidos.

Além disso, ressoa pouco técnica a afirmativa no sentido de que houve julgamento baseado em prova ilícita. Da análise do acórdão do HC 164.493/PR, verifica-se que os elementos probatórios derivados da operação “spoofing” sequer foram considerados para o reconhecimento da parcialidade do ex-juiz, muito embora também no voto vencedor conste a transcrição de uma confissão extrajudicial sobre a ocorrência dos diálogos entre o ex-juiz e os membros do Ministério Público. Aliás, cabe destacar que o mencionado julgamento põe em evidência a existência de um histórico de atuações heterodoxas do ex-magistrado, inclusive em casos mais antigos como da operação “Banestado” (HC 95.518/PR e RHC 144.615 AgR).

A esse respeito, merece destaque as palavras do ministro aposentado do STF, Celso de Mello, ao analisar a imparcialidade do ex-magistrado e atual candidato Sérgio Moro quando do julgamento do HC 95.518 (operação “Banestado”), no qual destacou sua perplexidade com o fato de o ex-juiz ter determinado, inclusive, o monitoramento dos advogados de defesa, fato este absolutamente semelhante com o que fora debatido no HC 164.493/PR: “O interesse pessoal que o magistrado revela em determinado procedimento persecutório, adotando medidas que fogem à ortodoxia dos meios que o ordenamento positivo coloca à disposição do poder público, transformando-se a atividade do magistrado numa atividade de verdadeira investigação penal. É o magistrado investigador”.

O retrospecto, portanto, evidencia que a atuação excessiva do ex-juiz Sérgio Moro não ocorreu de maneira episódica e isolada. Há dados, disponíveis a todos, que apontam para violação do princípio da imparcialidade, bem como para a forte participação do ex-juiz na colheita probatória, consubstanciando a crítica de Franco Cordero sobre o “primado da hipótese sobre os fatos” (“Procedimiento Penal. Vol. 1”. Temis, 2000. p. 23).

No caso específico, o julgamento do HC 164.493/PR não se ateve à análise da imparcialidade em abstrato. Foram discutidos, nada mais, nada menos, que sete fatos indicativos da quebra de imparcialidade, quais sejam: a) condução coercitiva fora das hipóteses legais; b) quebra do sigilo telefônico do investigado, familiares e advogados; c) divulgação seletiva de interceptações telefônicas manifestamente ilegais; d) atuação em período de férias para evitar cumprimento de ordem de Habeas Corpus; e) sentença condenatória injusta; f) levantamento de sigilo e traslado de elementos probatórias para os autos da ação penal após o término da instrução processual por iniciativa própria do ex-magistrado; e g) aceite e participação no governo federal no cargo de ministro da Justiça.

Para ficar em um único exemplo, o episódio de quebra de sigilo telefônico dos advogados do ex-presidente foi comunicado pela operadora telefônica, deixando explícito que um dos ramais interceptados não tinha relação com o que fora pedido pelo órgão ministerial. Nada obstante, nenhuma providência foi tomada. Esse dado, por si só, torna claro que “os atos jurisdicionais praticados pelo ex-juiz denotam em toda sua complexidade a implementação de uma atuação acusatória proativa, seja para restringir a possibilidade de defesa dos acusados, seja para passar por cima dos limites da demarcação do princípio constitucional do juiz natural” (HC 164.493/PR, relator p/ acórdão ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma).

Nessa ambiência, qualquer análise sobre a operação “lava jato” deveria avaliar o que de fato foi decidido nos julgamento criticados, bem como aprofundar o significado e alcance normativo dos direitos e garantias fundamentais para o Estado democrático de Direito, considerando, sobretudo, que a guarda e defesa dos direitos fundamentais não deriva de um arroubo isolado, manifestado em um único julgamento, mas possui fortes raízes no Direito interno e convencional, e em diversos precedentes da Suprema Corte, revelando, no mínimo, o respeito à integridade e coerência do sistema.

Muito mais do que justificativas à operação “lava jato”, pensar em reforma da Justiça Criminal deveria levar em conta o projeto do novo Código Processo Penal que aguarda, há mais de dez anos, conclusão no Congresso Nacional. De igual sorte, levar em consideração, a quantidade de presos provisórios existentes no Brasil, sem condenação definitiva. E, sobretudo, levar em conta a necessidade de fincarmos bases culturais para aprofundamento de uma teoria da decisão com finalidade de afastar ou limitar o excesso de discricionariedade, bem como levar a sério uma teoria racional da prova.

Por isso, sustentar eventual reforma no super-princípio do “combate à criminalidade” aponta para caminhos já traçados pela humanidade que pouco ou nada contribuíram para o fortalecimento do Estado de Direito. Em conclusão, um programa de reforma da Justiça Criminal a partir do mencionado superprincípio pode significar muito, menos pensar grande — e muito menos pensar juridicamente.

Filipe Coutinho da Silveira é advogado, especialista em Criminologia & Direito Penal pela PUCRS, em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, em Ciências Criminais pela UFPA, professor universitário, sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff, vice-presidente da Abracrim/PA.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  04 de fevereiro de 2022.