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02/03/22
Por Fernando Facury Scaff*
Na peça “Romeu e Julieta”, Shakespeare relata que as famílias dos dois jovens se odiavam havia séculos, porém eles se amavam, e, na inesquecível cena do balcão, Julieta diz a Romeu: “É só seu nome que é meu inimigo; seria o mesmo, se não fosse Montecchio [1]. Que é Montecchio? Não é pé, nem mão, nem braço, nem feição, nem parte alguma de homem algum. Oh, chame-se outra coisa! Que é que há num nome? O que chamamos rosa teria o mesmo cheiro com outro nome”. E arremata com um caloroso “Fique comigo”.
Essa frase de Shakespeare resume séculos de teoria da linguagem, afinal, uma rosa será uma rosa, e terá o mesmo cheiro, mesmo que a chamem por outro nome — o que importa é a essência da coisa.
Sem nenhum encanto ou poesia, essa mesma lógica pode ser encontrada no artigo 4º, I, do CTN, quando afirma que “a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para qualificá-la a denominação e demais características formais adotadas pela lei”.
E isso tem tudo a ver com o tema financeiro sob análise: incentivos e benefícios fiscais, e como o programa Reintegra deve ser enquadrado nesse rol.
Comecemos por incentivos e benefícios ficais. Há muita confusão semântica entre as expressões, sendo até mesmo usual as duas serem normativamente utilizadas em conjunto. Porém, há uma diferença semântica entre benefício e incentivo fiscal.
Os benefícios visam a diferenciar, distinguir, privilegiar determinada atividade ou empresa. É como se houvesse uma linha imaginária de isonomia tributária entre as empresas e ela fosse quebrada para dar um benefício fiscal a determinada atividade ou empreendimento. Poder-se-ia até falar em uma situação de privilégio, justificado ou injustificado, que tivesse sido concedida àquela unidade empresarial. Há uma distinção em face da média da tributação.
Os incentivos fiscais são semelhantes, havendo (pelo menos) uma pequena distinção, pois estes visam a estimular, incentivar, impulsionar determinada empresa ou setor. Os exemplos nesse caso são vastíssimos. Todos os incentivos fiscais regionais (Sudam, Sudene e Sudeco) fazem parte desse grupo, pois têm em sua gênese a ideia de desenvolver as respectivas regiões brasileiras. No fundo a distinção apontada existe, mas é sutil e encontra-se na motivação: nos benefícios há uma diferenciação, nos incentivos busca-se estimular.
Esses dois conceitos decorrem de concessões dos governos, fruto das políticas econômicas adotadas, que podem dar bons ou péssimos resultados. Na formulação da política pública não há direito das empresas em obter tal ou qual benefício ou incentivo fiscal. O direito surge depois de formulada a política e enquadrada a empresa como beneficiária daquele regime fiscal diferenciado. A partir daí a vantagem só pode ser extinta caso alguns requisitos sejam obedecidos — tecnicamente, pode-se dizer que o benefício ou incentivo fiscal se torna sinalagmático, pois haverá uma espécie de contrato entre as partes, no qual direitos e obrigações recíprocas devem ser cumpridas.
Assentes esses conceitos, passemos ao Reintegra, que não é nem benefício e nem incentivo fiscal. Trata-se de um direito das empresas desde sua origem, fruto da desoneração das exportações, e como a recuperação dos resíduos de crédito na cadeia produtiva. Desde a descrição do Reintegra (Lei 12.546/11, artigo 1º) vê-se em seu escopo “…o objetivo de reintegrar valores referentes a custos tributários federais residuais existentes nas suas cadeias de produção”, de tal modo a permitir que “a pessoa jurídica produtora que efetue exportação de bens manufaturados no país (possa apurar) valor para fins de ressarcir parcial ou integralmente o resíduo tributário federal existente na sua cadeia de produção” (artigo 2º).
Ou seja, não há nem um benefício e nem um incentivo fiscal aos exportadores, mas se constata o direito destes em obter o ressarcimento dos resíduos de créditos na cadeia exportadora. Existem várias normas internacionais regulando a tributação no país de destino (ver, por todos, o livro de Lucas Bevilacqua).
No âmbito constitucional brasileiro, deve-se considerar que a exportação em si (plena) é imune à tributação, ocasionando que a oneração dos resíduos da cadeia exportadora infrinja o direito de propriedade em conjugação com a vedação de utilização de tributo com fins de confisco (este, não pelo elevado valor, mas pela singela manutenção da oneração, infringindo a regra da imunidade das exportações).
Feita essa distinção, constata-se que sendo um direito, e não um benefício ou um incentivo, a escala móvel de ressarcimento do Reintegra (artigo 2º, §2º, entre 0,1% e 3,0%) é uma estimativa de devolução dos resíduos (direito financeiro, pois o Estado é o devedor), que pode ou não repor as perdas, em tudo semelhante ao que ocorre na tributação por estimativa (direito tributário, pois o Estado seria o credor). Não se há de esquecer que o STF já decidiu que na tributação por estimativa o contribuinte pode promover o acertamento do que pagou a maior e pedir ressarcimento. O mesmo vale em sentido oposto. Exatamente por isso é que o §2º do artigo 22 da Lei nº 13.043/2014 estabelece que o crédito poderá “…ser acrescido em até 2 (dois) pontos percentuais, em caso de exportação de bens em cuja cadeia de produção se verifique a ocorrência de resíduo tributário que justifique a devolução adicional …”, desde que “comprovado por estudo ou levantamento realizado conforme critérios e parâmetros definidos em regulamento”.
Bingo! O valor estimado entre 0,1% e 3% pode ainda ser acrescido de mais dois pontos percentuais caso se comprove que o montante estimado não corresponde à realidade dos resíduos que oneram a cadeia de produção. Fosse benefício ou incentivo fiscal essa norma não existiria; trata-se de um direito, a ser acertado caso a caso, na hipótese de a estimativa se mostrar inadequada, e na forma do regulamento, que nunca veio, tal qual na música “Pedro Pedreiro“, de Chico Buarque.
Além disso, sendo um direito, existe toda a questão da não surpresa e da segurança jurídica envolvendo essa matéria, que deve ser considerada à luz da anterioridade.
E ainda, mais ousado, essa distinção pode apontar para o direito de as empresas instaladas em ZPEs receberem os valores do Reintegra, pois estes não se caracterizam como incentivos ou benefícios fiscais. A conferir.
Em síntese: alguns desses temas estarão sobre a mesa do STF durante o julgamento das ADIs 6.040 e 6.055, previsto para o dia 17 de março. Aguardemos.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 01 de março de 2022.