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18/10/22
Por Filipe Coutinho da Silveira
Em que pese o constante processo de modernização enfrentado pelo mundo nos últimos cem anos, em termos econômicos, o Brasil continua a se destacar por meio de seu potencial ambiental, seja na mineração, seja em outros nichos da economia agro. Não por outro motivo, o agronegócio cada vez mais tem se tornado um dos vetores mais importantes da economia brasileira, chegando a representar 27% do PIB, segundo dados da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária. Por sua vez, o estado do Pará tem contribuindo de forma essencial, sobretudo, por meio da mineração (extrativismo mineral), da agricultura, pecuária, extrativismo vegetal e da produção de energia.
Nada obstante a sua importância central, até 1998 inexistia no Brasil legislação criminal dedicada à tutela do meio ambiente, em que pese a Constituição, desde 1988, reconhecer o meio ambiente como bem jurídico essencial, bem de uso comum do povo, digno de proteção, em diversos ramos jurídicos (cível, administrativo e criminal).
A partir de 1998, devido às constantes pressões internacionais, entrou em vigor a Lei 9.605, disciplinando sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Dentre as principais novidades, a Lei dos Crimes Ambientais trouxe, pela primeira vez, a possibilidade de se estabelecer a responsabilidade penal da pessoa jurídica ou, em outras palavras, a punição criminal da empresa. Para tanto, a Lei estabeleceu como penas criminais aplicáveis às empresas a multa, penas restritivas de direitos (v.g., suspensão parcial ou total das atividades, interdição temporária e proibição de contratar com o poder público), bem como penas de prestação de serviços à comunidade (v.g., custeio de programas e projetos ambientais, recuperação de áreas degradadas e contribuições à entidades públicas).
Ocorre que a grande novidade (responsabilidade penal das empresas) não foi acompanhada de uma legislação de adequação e, muito menos se buscou compatibilizar um instituto tão moderno com as características essenciais do Direito Penal. Tais ausências, provocam (e provocaram) diversas dúvidas na aplicação do instituto produzindo resultados interpretativos que não são mais que as próprias acrobacias interpretativas das instâncias de decisão. Assim, em que pese a incompatibilidade insuperável entre o dolo/intenção que dirige conduta penalmente relevante para alcançar um determinado resultado e, por exemplo, o princípio da precaução (que pressupõe a inexistência de ciência de conhecimento do resultado) inúmeros são os julgados que, relativizam as categorias dogmáticas criminais, para justificar a aplicação do direito por meio de conceitos metajurídicos, aumentando, sobremaneira, a subjetividade, a discricionariedade no ato de decidir e, consequentemente, provocando enorme insegurança jurídica.
No mesmo sentido caminham os problemas de atribuição de responsabilidade da pessoa jurídica. Inicialmente, ao interpretar o artigo 3º da Lei 9605/1998, considerando que uma empresa, no campo da realidade empírica, jamais poderia produzir uma conduta, nos moldes da conduta humana, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a responsabilidade penal da pessoa jurídica pressupunha que o Acusador também identificasse quem seria a pessoa(s) física(s) que, atuando no interesse e benefício da entidade moral, fosse o responsável pela conduta proibida, estabelecendo assim o instituto da dupla imputação necessária, isto é, uma empresa somente poderia ser responsabilizada se a atribuição da prática do crime também indicasse a participação de, ao menos, uma pessoa física.
Esse entendimento foi revisto em 2013, quando o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário nº 548.181, de relatoria da ministra Rosa Weber. No julgado referência, o STF fixou o entendimento que interpretação promovida pelo Superior Tribunal de Justiça estaria a criar uma limitação não autorizada ao artigo 225, §3º da Constituição Federal, razão pela qual o processo de atribuição de responsabilidade penal da pessoa jurídica não poderia depender do instituto da dupla imputação necessária. Assim, o Supremo estabeleceu, para imputação de crimes às empresas, o requisito da pertinência institucional, ou seja, que o delito seja praticado no interesse ou benefício da sua entidade, sem a necessidade de identificação da pessoa física responsável.
Ocorre que a nova interpretação não conseguiu responder aos problemas derivados da falta de sistematização entre o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica e os institutos seculares do conceito de crime, derivados da ciência penal. A título meramente exemplificativo, como compatibilizar a relação entre dolo (intenção) e princípio da precaução (que pressupõe o desconhecimento do resultado)? Como analisar se a empresa possui potencial consciência da ilicitude? De que forma, poder-se-ia argumentar que a pessoa jurídica poderia agir de outro modo? A eventual incorporação de uma empresa por outra pode ser comparada à sua extinção, proporcionando a extinção da punibilidade? Aplica-se às pessoas jurídicas o princípio constitucional da intranscendência da pena ou esse ramo de direito admitiria certa limitação dos direitos e garantias fundamentais?
Essas são questões bastante graves que têm recebido análises superficiais por parte da comunidade jurídica. Até hoje, a jurisprudência tem se conformado com o argumento de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica decorreu de uma opção política-criminal do legislador e, por tal motivo, seria legítima.
Ocorre que a história já nos demonstrou que o método de interpretação baseado na vontade do legislador leva, inexoravelmente, à aplicação da lei a partir da vontade do julgador, aumentando o risco de violação ao princípio da legalidade ou de sujeição do Poder Judiciário à lei. Com isso se quer dizer que não se pode outorgar, de forma ilimitada, o método de interpretação às instâncias julgadoras. A interpretação deve estar limitada pelo conteúdo dos valores constitucionais, os quais devem possuir central importância no processo de aperfeiçoamento do direito.
Um exemplo prático pode ajudar a compreender a importância da questão. Já se disse anteriormente que a Lei 9605/1998 ao estabelecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas deixou de tratar de alguns assuntos essenciais, como por exemplo, no caso de extinção da empresa ou incorporação entre empresas. Em outras palavras, nesses casos, a pretensão punitiva deve ser extinta, equiparando à morte do ente moral (CP, artigo 107, I) ou a pretensão punitiva deve ser estendida à empresa sucessora, incorporadora ou ao grupo econômico?
Na literatura jurídica essa questão foi analisada tendo gerado resultados diversos. Em um primeiro caso penal [1], o Ministério Público acusou uma determinada empresa de ter incorrido nas penas do crime de dano direto à unidade de conservação (Lei 9605/98, artigo 40). Ao apresentar a defesa, foi demonstrado ao Órgão Julgador que empresa acusada já havia sido extinta, antes mesmo do oferecimento da denúncia. Ao tomar conhecimento dessa informação, o Ministério Público aditou a denúncia, atribuindo a responsabilidade penal à empresa controladora, destacando que por se tratar da “empresa-mãe” deveria responder pelo crime.
Observe-se que um tal raciocínio exige a interpretação do Direito desconsiderando diversos princípios constitucionais (como a responsabilidade subjetiva/culpabilidade e intranscendência da pena), ou seja, o método interpretativo utilizado decorre de uma avaliação pessoal, discricionária do intérprete daquilo que se considera justo, e não de uma interpretação fundada nos princípios constitucionais que condicionam a compreensão do Direito no Brasil.
Apesar da evidente ausência de correlação entre os princípios constitucionais e os institutos dogmáticos e seculares do Direito Penal, o órgão julgador, reconhecendo a inexistência de responsabilidade objetiva ou solidária em matéria penal, absolveu a empresa controladora por ausência de provas e não pelo reconhecimento de impossibilidade do argumento ministerial.
Mais recentemente, o STJ julgou caso semelhante. No Recurso Especial nº 1.977.172/PR, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas, foi julgado caso no qual se discutia se a empresa incorporadora deveria responder pelos crimes praticados pela empresa incorporada ou se o processo de incorporação deveria gerar a extinção da punibilidade, aplicando-se de forma analógica o artigo 107, I do Código Penal Brasileiro.
O Ministério Público pretendia a condenação da empresa incorporadora e, para tanto, sustentava que o princípio da intranscendência da pena teria aplicabilidade restrita às pessoas naturais, sendo incompatível com a natureza ideal as pessoas jurídicas, até como forma de prevenir eventual “manobra de esquiva consistente na extinção formal do ente”. Ademais, apresentou o argumento no sentido de que as sanções patrimoniais, passíveis de aplicação às pessoas jurídicas, não se encontram abrangidas pela ordem constitucional de intranscendência (artigo 5º, XLV, da CR/1988), razão pela qual inexistiria qualquer restrição à extensão da responsabilidade penal para a empresa incorporadora.
Em razão da relevância e do ineditismo do debate, o caso foi transferido para a 3ª Seção do STJ, tendo, ao final, sido decidido que 1) a “incorporação gera a extinção da sociedade incorporada, transmitindo-se à incorporadora os direitos e obrigações que cabiam à primeira”; 2) a “pretensão punitiva estatal não se enquadra no conceito jurídico-dogmático de obrigação patrimonial transmissível, tampouco se confunde com o direito à reparação civil dos danos causados ao meio ambiente. Logo, não há norma que autorize a transferência da responsabilidade penal à incorporadora”; 3) o “princípio da intranscendência da pena, previsto no artigo 5º, XLV, da CR/1988, tem aplicação às pessoas jurídicas”; 4) “Extinta legalmente a pessoa jurídica ré — sem nenhum indício de fraude, como expressamente afirmou o acórdão recorrido —, aplica-se analogicamente o artigo 107, I, do CP, com a consequente extinção de sua punibilidade”.
Apesar da decisão da 3ª Seção do STJ ter reconhecido a impossibilidade de se transmitir à empresa incorporadora os crimes cometidos pela empresa incorporada, deve-se observar que o julgamento não foi unânime. Em verdade, esse resultado somente foi alcançado por apertadíssima maioria.
Se bem observado a certidão de julgamento, percebe-se que o argumento de impossibilidade de se transferir a responsabilidade penal recebeu cinco votos dos nove possíveis. Já o argumento da possibilidade de transferência da responsabilidade penal, recebeu quatro votos [2].
Os ministros que votaram pela possibilidade da empresa incorporadora responder pelos crimes praticados pela empresa incorporada, sustentaram, em apertada síntese, 1) impossibilidade de se comparar a morte da pessoa humana com a morte da pessoa jurídica, isto é, haveria apenas uma tênue semelhança; 2) a incorporação de uma empresa significa sua absorção e não sua efetiva morte; 3) novos modelos de criminalidade estariam a exigir soluções diferentes e adequadas para a complexidade das relações sociais modernas; 4) certas garantias fundamentais não se amoldariam às pessoas coletivas.
De todos os argumentos chama atenção o fato de os ministros, e do próprio Ministério Público, sustentarem que alguns direitos e garantias fundamentais, entre eles o princípio da instranscendência da pena, não seriam aplicáveis às pessoas jurídicas, sobretudo, em vista da necessidade de se alcançar soluções diversas e adequadas à complexidade das relações sociais modernas. De se observar que tal interpretação não encontra respaldo na Constituição e nem em Tratados internacionais. Aliás, não existe nenhum dispositivo da Constituição que autorize esse tipo de interpretação e a Convenção Americana de Direitos Humanos veda qualquer interpretação que limite em maior abrangência Direitos Fundamentais (artigo 29, a, b, c, d, CADH).
Tal e qual mencionado em linhas acima, a expressão “alcançar soluções diversas e adequadas à complexidade das relações sociais modernas” passa ser utilizada como um elemento metajurídico (estranho ao Direito) para justificar uma interpretação pessoal e discricionária do Ordenamento Jurídico. E, como isso já não bastasse, os ministros estariam criando uma limitação não autorizada ao conteúdo do artigo 5º, XLV da Constituição (princípio da intranscendência da pena) o que conflita com o método interpretativo utilizado pela Suprema Corte quando afastou a possibilidade da imputação de responsabilidade penal da empresa depender da teoria a dupla imputação necessária, exatamente, porque, estaria a criar uma limitação não autorizada ao artigo 225, §3º da Carta Cidadã.
O julgamento por maioria, e a apertada votação, indicam, portanto, que a interpretação, aplicação e aperfeiçoamento do Direito brasileiro ainda não decorrem de um método claro, ou pelo menos, a questão do método vem sendo tratada de forma secundária, perdendo espaço para o pragmatismo e a eficiência. O risco de assim agir, reside na enorme insegurança jurídica provocada aos destinatários da norma, isto é, para o jurisdicionado que cada vez mais está sujeito ao Direito Judicial.
Neste cenário, a profecia de Phillip Heck vem se confirmando, ou seja, um direito interpretado a partir de pragmatismos e de conceitos metajurídicos, se comporta como um balão que voa livre, seguindo os ventos do espírito da época.
[i] Ação Penal nº 0002352-38.2016.4.01.3901 que tramitou na 2ª Vara Federal de Marabá.
[ii] Votaram pela impossibilidade de se transferir a responsabilidade penal os seguintes julgadores: ministro Ribeiro Dantas (relator), acompanhado pelos senhores ministros Olindo Menezes (desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Jesuíno Rissato (desembargador Convocado do TJDFT), ministro Sebastião Reis Júnior e ministro Reynaldo Soares da Fonseca (presidente da Terceira Seção). Votaram pela possibilidade de transferência da responsabilidade penal ministros Joel Ilan Paciornik, Antonio Saldanha Palheiro, João Otávio de Noronha e Rogerio Schietti Cruz.
Em que pese o constante processo de modernização enfrentado pelo mundo nos últimos 100 anos, em termos econômicos, o Brasil continua a se destacar por meio de seu potencial ambiental, seja na mineração, seja em outros nichos da economia agro. Não por outro motivo, o agronegócio cada vez mais tem se tornado um dos vetores mais importantes da economia brasileira, chegando a representar 27% do PIB, segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. Por sua vez, o Estado do Pará tem contribuindo de forma essencial, sobretudo, por meio da mineração (extrativismo mineral), da agricultura, pecuária, extrativismo vegetal e produção de energia.
Nada obstante a sua importância central, até 1998 inexistia no Brasil legislação criminal dedicada à tutela do meio ambiente, em que pese a Constituição Brasileira, desde 1988, reconhecer o meio ambiente como bem jurídico essencial, bem de uso comum do povo, digno de proteção, em diversos ramos jurídicos (cível, administrativo e criminal).
A partir de 1998, devido às constantes pressões internacionais, entrou em vigor a Lei 9.605 disciplinando sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Dentre as principais novidades, a Lei dos Crimes Ambientais trouxe, pela primeira vez, a possibilidade de se estabelecer a responsabilidade penal da pessoa jurídica ou, em outras palavras, a punição criminal da empresa. Para tanto, a Lei estabeleceu como penas criminais aplicáveis às empresas a multa, penas restritivas de direitos (v.g., suspensão parcial ou total das atividades, interdição temporária e proibição de contratar com o poder público), bem como penas de prestação de serviços à comunidade (v.g., custeio de programas e projetos ambientais, recuperação de áreas degradadas e contribuições à entidades públicas).
Ocorre que a grande novidade (responsabilidade penal das empresas) não foi acompanhada de uma legislação de adequação e, muito menos se buscou compatibilizar um instituto tão moderno com as características essenciais do Direito Penal. Tais ausências, provocam (e provocaram) diversas dúvidas na aplicação do instituto produzindo resultados interpretativos que não são mais que as próprias acrobacias interpretativas das instâncias de decisão. Assim, em que pese a incompatibilidade insuperável entre o dolo/intenção que dirige conduta penalmente relevante para alcançar um determinado resultado e, por exemplo, o princípio da precaução (que pressupõe a inexistência de ciência de conhecimento do resultado) inúmeros são os julgados que, relativizam as categorias dogmáticas criminais, para justificar a aplicação do direito por meio de conceitos metajurídicos, aumentando, sobremaneira, a subjetividade, a discricionariedade no ato de decidir e, consequentemente, provocando enorme insegurança jurídica.
No mesmo sentido caminham os problemas de atribuição de responsabilidade da pessoa jurídica. Inicialmente, ao interpretar o art. 3º da Lei 9605/1998, considerando que uma empresa, no campo da realidade empírica, jamais poderia produzir uma conduta, nos moldes da conduta humana, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a responsabilidade penal da pessoa jurídica pressupunha que o Acusador também identificasse quem seria a pessoa (s) física (s) que, atuando no interesse e benefício da entidade moral, fosse o responsável pela conduta proibida, estabelecendo assim o instituto da dupla imputação necessária, isto é, uma empresa somente poderia ser responsabilizada se a atribuição da prática do crime também indicasse a participação de, ao menos, uma pessoa física.
Esse entendimento foi revisto em 2013, quando o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário nº 548.181, de Relatoria da Ministra Rosa Weber. No julgado referência, a Suprema Corte fixou o entendimento que interpretação promovida pelo Superior Tribunal de Justiça estaria a criar uma limitação não autorizada ao artigo 225, §3º da Constituição Federal, razão pela qual o processo de atribuição de responsabilidade penal da pessoa jurídica não poderia depender do instituto da dupla imputação necessária. Assim, o STF estabeleceu, para imputação de crimes às empresas, o requisito da pertinência institucional, ou seja, que o delito seja praticado no interesse ou benefício da sua entidade, sem a necessidade de identificação da pessoa física responsável.
Ocorre que a nova interpretação não conseguiu responder aos problemas derivados da falta de sistematização entre o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica e os institutos seculares do conceito de crime, derivados da ciência penal. A título meramente exemplificativo, como compatibilizar a relação entre dolo (intenção) e princípio da precaução (que pressupõe o desconhecimento do resultado)? Como analisar se a empresa possui potencial consciência da ilicitude? De que forma, poder-se-ia argumentar que a pessoa jurídica poderia agir de outro modo? A eventual incorporação de uma empresa por outra pode ser comparada à sua extinção, proporcionando a extinção da punibilidade? Aplica-se às pessoas jurídicas o princípio constitucional da intranscedência da pena ou esse ramo de direito admitiria certa limitação dos direitos e garantias fundamentais?
Essas são questões bastante graves que têm recebido análises superficiais por parte da comunidade jurídica. Até hoje, a jurisprudência tem se conformado com o argumento de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica decorreu de uma opção política-criminal do legislador e, por tal motivo, seria legítima.
Ocorre que a história já nos demonstrou que o método de interpretação baseado na vontade do legislador leva, inexoravelmente, à aplicação da lei a partir da vontade do julgador, aumentando o risco de violação ao princípio da legalidade ou de sujeição do Poder Judiciário à lei. Com isso se quer dizer que não se pode outorgar, de forma ilimitada, o método de interpretação às instâncias julgadoras. A interpretação deve estar limitada pelo conteúdo dos valores constitucionais, os quais devem possuir central importância no processo de aperfeiçoamento do direito.
Um exemplo prático pode ajudar a compreender a importância da questão. Já se disse anteriormente que a Lei 9605/1998 ao estabelecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas deixou de tratar de alguns assuntos essenciais, como por exemplo, no caso de extinção da empresa ou incorporação entre empresas. Em outras palavras, nesses casos, a pretensão punitiva deve ser extinta, equiparando à morte do ente moral (CP, artigo 107, I) ou a pretensão punitiva deve ser estendida à empresa sucessora, incorporadora ou ao grupo econômico?
Na literatura jurídica essa questão foi analisada tendo gerado resultados diversos. Em um primeiro caso penal [1], o Ministério Público acusou uma determinada empresa de ter incorrido nas penas do crime de dano direto à unidade de conservação (Lei 9605/98, artigo 40). Ao apresentar a defesa, foi demonstrado ao Órgão Julgador que empresa acusada já havia sido extinta, antes mesmo do oferecimento da denúncia. Ao tomar conhecimento dessa informação, o Ministério Público aditou a denúncia, atribuindo a responsabilidade penal à empresa controladora, destacando que por se tratar da “empresa-mãe” deveria responder pelo crime.
Observe-se que um tal raciocínio exige a interpretação do Direito desconsiderando diversos princípios constitucionais (como a responsabilidade subjetiva/culpabilidade e intranscendência da pena), ou seja, o método interpretativo utilizado decorre de uma avaliação pessoal, discricionária do intérprete daquilo que se considera justo, e não de uma interpretação fundada nos princípios constitucionais que condicionam a compreensão do Direito no Brasil.
Apesar da evidente ausência de correlação entre os princípios constitucionais e os institutos dogmáticos e seculares do Direito Penal, o Órgão Julgador, reconhecendo a inexistência de responsabilidade objetiva ou solidária em matéria penal, absolveu a empresa controladora por ausência de provas e não pelo reconhecimento de impossibilidade do argumento ministerial.
Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça julgou caso semelhante. No Recurso Especial nº 1.977.172/PR, de Relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, foi julgado caso no qual se discutia se a empresa incorporadora deveria responder pelos crimes praticados pela empresa incorporada ou se o processo de incorporação deveria gerar a extinção da punibilidade, aplicando-se de forma analógica o artigo 107, I do Código Penal Brasileiro.
O Ministério Público pretendia a condenação da empresa incorporadora e, para tanto, sustentava que o princípio da intranscendência da pena teria aplicabilidade restrita às pessoas naturais, sendo incompatível com a natureza ideal as pessoas jurídicas, até como forma de prevenir eventual “manobra de esquiva consistente na extinção formal do ente”. Ademais, apresentou o argumento no sentido de que as sanções patrimoniais, passíveis de aplicação às pessoas jurídicas, não se encontram abrangidas pela ordem constitucional de intranscendência (artigo 5º, XLV, da CR/1988), razão pela qual inexistiria qualquer restrição à extensão da responsabilidade penal para a empresa incorporadora.
Em razão da relevância e do ineditismo do debate, o caso foi transferido para a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, tendo, ao final, sido decidido que 1) a “incorporação gera a extinção da sociedade incorporada, transmitindo-se à incorporadora os direitos e obrigações que cabiam à primeira”; 2) a “pretensão punitiva estatal não se enquadra no conceito jurídico-dogmático de obrigação patrimonial transmissível, tampouco se confunde com o direito à reparação civil dos danos causados ao meio ambiente. Logo, não há norma que autorize a transferência da responsabilidade penal à incorporadora”; 3) o “princípio da intranscendência da pena, previsto no artigo 5º, XLV, da CR/1988, tem aplicação às pessoas jurídicas”; 4) “Extinta legalmente a pessoa jurídica ré — sem nenhum indício de fraude, como expressamente afirmou o acórdão recorrido —, aplica-se analogicamente o artigo 107, I, do CP, com a consequente extinção de sua punibilidade”.
Apesar da decisão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça ter reconhecido a impossibilidade de se transmitir à empresa incorporadora os crimes cometidos pela empresa incorporada, deve-se observar que o julgamento não foi unânime. Em verdade, esse resultado somente foi alcançado por apertadíssima maioria.
Se bem observado a certidão de julgamento, percebe-se que o argumento de impossibilidade de se transferir a responsabilidade penal recebeu cinco votos dos nove possíveis. Já o argumento da possibilidade de transferência da responsabilidade penal, recebeu quatro votos [2].
Os ministros que votaram pela possibilidade da empresa incorporadora responder pelos crimes praticados pela empresa incorporada, sustentaram, em apertada síntese, 1) impossibilidade de se comparar a morte da pessoa humana com a morte da pessoa jurídica, isto é, haveria apenas uma tênue semelhança; 2) a incorporação de uma empresa significa sua absorção e não sua efetiva morte; 3) novos modelos de criminalidade estariam a exigir soluções diferentes e adequadas para a complexidade das relações sociais modernas; 4) certas garantias fundamentais não se amoldariam às pessoas coletivas.
De todos os argumentos chama atenção o fato de os ministros, e do próprio Ministério Público, sustentarem que alguns direitos e garantias fundamentais, entre eles o princípio da instranscedência da pena, não seriam aplicáveis às pessoas jurídicas, sobretudo, em vista da necessidade de se alcançar soluções diversas e adequadas à complexidade das relações sociais modernas. De se observar que tal interpretação não encontra respaldo na Constituição Federal e nem em Tratados internacionais. Aliás, não existe nenhum dispositivo da Constituição que autorize esse tipo de interpretação e a Convenção Americana de Direitos Humanos veda qualquer interpretação que limite em maior abrangência Direitos Fundamentais (artigo 29, a, b, c, d, CADH).
Tal e qual mencionado em linhas acima, a expressão “alcançar soluções diversas e adequadas à complexidade das relações sociais modernas” passa ser utilizada como um elemento metajurídico (estranho ao Direito) para justificar uma interpretação pessoal e discricionária do Ordenamento Jurídico. E, como isso já não bastasse, os ministros estariam criando uma limitação não autorizada ao conteúdo do artigo 5º, XLV da Constituição Federal (princípio da intranscedência da pena) o que conflita com o método interpretativo utilizado pela Suprema Corte quando afastou a possibilidade da imputação de responsabilidade penal da empresa depender da teoria a dupla imputação necessária, exatamente, porque, estaria a criar uma limitação não autorizada ao artigo 225, §3º da Carta Cidadã.
O julgamento por maioria, e a apertada votação, indicam, portanto, que a interpretação, aplicação e aperfeiçoamento do Direito brasileiro ainda não decorrem de um método claro, ou pelo menos, a questão do método vem sendo tratada de forma secundária, perdendo espaço para o pragmatismo e a eficiência. O risco de assim agir, reside na enorme insegurança jurídica provocada aos destinatários da norma, isto é, para o jurisdicionado que cada vez mais está sujeito ao Direito Judicial.
Neste cenário, a profecia de Phillip Heck vem se confirmando, ou seja, um direito interpretado a partir de pragmatismos e de conceitos metajurídicos, se comporta como um balão que voa livre, seguindo os ventos do espírito da época.
[1] Ação Penal nº 0002352-38.2016.4.01.3901 que tramitou na 2ª Vara Federal de Marabá.
[2] Votaram pela impossibilidade de se transferir a responsabilidade penal os seguintes julgadores: ministro Ribeiro Dantas (relator), acompanhado pelos senhores ministros Olindo Menezes (desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Jesuíno Rissato (desembargador Convocado do TJDFT), ministro Sebastião Reis Júnior e ministro Reynaldo Soares da Fonseca (presidente da Terceira Seção). Votaram pela possibilidade de transferência da responsabilidade penal ministros Joel Ilan Paciornik, Antonio Saldanha Palheiro, João Otávio de Noronha e Rogerio Schietti Cruz.
Filipe Coutinho da Silveira é advogado, especialista em Criminologia & Direito Penal pela PUCRS, em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, em Ciências Criminais pela UFPA, professor universitário, sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff, vice-presidente da Abracrim/PA.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 18 de outubro de 2022.