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29/11/21
Por Fernando Facury Scaff*
Hoje é comemorado o dia da Proclamação da República, mas, será que nos tornamos uma república, a partir da sua singela proclamação por Deodoro da Fonseca em 15 de novembro de 1889?
Sim e não, a depender do conceito que se adota para a palavra república. Resumo neste texto algumas ideias que coletei e desenvolvi em obra acadêmica[1].
Maquiavel usa república como sinônimo de Estado, mas também a usa como uma forma de governo oposta à monarquia, conforme se pode ver em O Príncipe[2] e também nos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio[3]. Hobbes[4] também usa a expressão república no sentido de Estado. Jean Bodin equivale república à soberania em sua obra Os seis livros da República[5].
Georg Jellinek[6] usa o termo como um sistema de “não monarquia”, porém também a usa no sentido de formação de um Estado nacional, possivelmente com algum perfil federativo ou confederativo significando também soberania.
Hannah Arendt usa a palavra república no título de um de seus livros, mas trata da condução da política externa estadunidense na época da guerra do Vietnã[7].
É igualmente habitual haver a descrição de república como um sistema semelhante ao democrático, como se democracia e república significassem a mesma coisa. Isso é encontrado em vários autores, como Geraldo Ataliba[8], que escreveu sob os eflúvios da redemocratização brasileira que se iniciava em 1985, o que certamente influenciou sobremaneira sua escrita e compreensão acerca do assunto. Roque Carrazza[9] também correlaciona república com democracia, afirmando que os detentores do poder político são representantes do povo, e o exercem em caráter eletivo.
A identificação entre democracia e república é também o sentido adotado por Carl Schmitt, para quem “democracia como forma política significa também, segundo a terminologia atual, república”[10].
No número 10 d’O Federalista, Madison entende ser a república um sistema de governo representativo, e a democracia um sistema de governo direto[11]. Afonso Arinos de Melo Franco registra que essa configuração de eleições periódicas, com mandato fixado inclusive para a chefia do Poder Executivo nos EUA, venceu por apenas dois votos de diferença.[12]
Fábio Konder Comparato identifica o vocábulo república com valores éticos, que deve presidir as relações entre o poder público e a sociedade, sendo “o espírito republicano uma exigência de permanente aperfeiçoamento ético da comunidade”[13].
Daí ser necessário unir democracia e república, pois a primeira sem a segunda “é simples populismo distributivista”[14]. “A república é o regime por excelência da ética na política”, segundo Renato Janine Ribeiro[15]. Este autor relaciona democracia e república como atinentes à distinção entre desejo e vontade. “A república funciona pela vontade e a democracia, pelo desejo. A democracia expressa o desejo por mais. Bem orientado, esse desejo se converte em direito à igualdade, de bens, de oportunidades ou perante a lei. Já a república consiste na necessidade ou obrigação de refrear o próprio desejo, a fim de respeitar um bem comum que não é o patrimônio de uma sociedade por ações, mas o cerne do convívio social.”
O desejo é algo mais instintivo, ao passo que a vontade é melhor identificada na expressão força de vontade, que expressa exatamente o quanto se deve lutar para conter o desejo. É preciso que os desejos democráticos sejam contidos e educados pela vontade republicana, protegendo a res publica da cobiça de indivíduos e grupos poderosos, sejam públicos ou privados.
Essa análise rebate um dogma do direito financeiro, de que os recursos são finitos, mas as necessidades são infinitas. Não parece ser bem assim. As necessidades básicas, denominadas de mínimo existencial, são finitas e delimitadas em cada sociedade; infinitos são os desejos. O homem é um ser desejante.
A grande dificuldade é a construção de um Estado que seja, ao mesmo tempo, Republicano e Democrático de Direito em sociedades com grande desigualdade, pois, havendo poucos “muito ricos” e incontáveis “muito pobres” aqueles dominarão a estes e usarão o governo em seu favor.
A democracia se torna quase sempre um recurso discursivo nas sociedades marcadas por enormes desigualdades. Só haverá democracia efetiva quando também houver república. E ambas só serão conseguidas à custa de muita luta em sociedades desiguais. E, com democracia discursiva, haverá dominação oligárquica com retórica democrática com o uso não republicano da coisa pública. Ao invés de bem comum, a busca será do bem individual ou grupal, que pode ser entendido também como corporativo. Será mantida a igualdade que havia na antiguidade grega clássica — a democracia apenas entre iguais — enquanto a noção contemporânea de democracia é a da convivência entre desiguais, com tolerância para as diferenças individuais.
O fato é que o sistema democrático pode ser insuficiente para manter a democracia. O povo pode ser enganado, errar, ser levado a tomar decisões em razão de fortes emoções ou influenciado pelos meios de comunicação de massa. A democracia é insuficiente para um Estado de Direito. É necessário que o Estado contenha instituições democráticas, e seja também republicano. Afinal, como alertava Comparato no final do século passado: “a soberania popular não pode ser absoluta. Ou melhor, não existe soberania inocente, porque a própria ideia de um poder supremo e incontrastável representa aquela hybris, que a sabedoria grega sempre considerou a matriz da tragédia humana” [16].
Para demonstrar a insuficiência da democracia basta analisar a experiência democrática havida na Alemanha sob a Constituição de Weimar, que desaguou no nazismo, uma espécie de tirania, exatamente o oposto do que fora pretendido inicialmente. O mesmo percurso foi realizado na Itália, durante o fascismo, que acabou por esmagar a democracia, através do próprio princípio democrático mal compreendido e isoladamente considerado.
Discutindo sobre as liberdades, Isaiah Berlin[17] destacou que “a democracia pode desarmar uma dada oligarquia, um dado indivíduo ou conjunto de indivíduos privilegiado, mas ainda pode esmagar indivíduos tão impiedosamente quanto qualquer governante anterior. Um direito igual de oprimir — ou interferir — não é equivalente à liberdade”.
É necessário, portanto, que o Estado não seja apenas sustentado na soberania do povo, essência da democracia, mas que seja também estruturado e dirigido em busca dos valores e princípios republicanos estabelecidos na Constituição de cada país. Daí a ingente necessidade do estabelecimento e manutenção de Estados Republicanos e Democráticos de Direito. Não basta a democracia, pois o povo pode ser enganado, ou ser levado a erro, agindo sob fortes paixões que degeneram a apuração de sua vontade. É necessário que haja um telos, uma finalidade a ser perseguida, que mantenha a sociedade coesa e em busca de melhores níveis civilizatórios em proveito de todos, e não de um grupo que eventualmente esteja encastelado no poder e busque nele permanecer através do uso de meios que desvirtuem o ideal republicano, mesmo que ancorado nos procedimentos democráticos.
Só rompendo esse círculo perverso é que se poderá avançar rumo ao Estado Republicano e Democrático de Direito. É isso só pode ser feito com educação financeira, que é diferente de instrução financeira.
Daí surge a necessidade de congregar as capacidades financeiras, que, por um lado, devem respeitar a capacidade contributiva, no âmbito da arrecadação, em especial nas espécies tributárias, cobrando mais de quem ganha ou possui mais; e, por outro lado, a capacidade receptiva, pela qual os gastos públicos devem ser dirigidos a quem mais deles necessitam, conforme exposto por Regis de Oliveira[18].
Assim, cobrando mais de quem ganha mais, e gastando mais com que mais necessita, poderemos avançar no sentido de transformar o Brasil em um Estado Republicano e Democrático de Direito, pois a “proclamação” que hoje se comemora está muito longe de concretizar esse ideal.
[1] Para esse assunto ver SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2018.
[2] Maquiavel, Nicolau. O príncipe. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martim Claret, 20007. p. 15.
[3] Maquiavel. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 4. ed. Brasília: UnB, 2000. p. 25.
[4] Hobbes, Thomas. Leviatã. Tradução Rosina D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martim Claret, 2012. p. 15.
[5] Bodin, Jean. Os seis livros da República – Livro sexto. Tradução de José Ignácio Coelho Mendes Neto. São Paulo: Ícone, 2012.
[6] Jellinek, Georg. Teoria general del Estado. Tradução de Fernando de los Ríos Urruti. Granada: Comares, 2000. p. 702.
[7] Arendt, Hannah. Crises da República. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.
[8] Ataliba, Geraldo. República e Constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
[9] Carrazza, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
[10] Schmitt, Carl. Teoría de la Constitución. Tradução de Francisco Ayala. Madrid: Alianza, 2015. p. 291.
[11] Hamilton, Alexander; Madison, James; Jay, John. O federalista. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. 3. ed. 2. tir. Campinas: Russel Editores, 2010. p. 79.
[12] Franco, Afonso Arinos de Melo. Curso de direito constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. I, p. 170.
[13] Comparato, Fábio Konder. Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 622.
[14] Ribeiro, Renato Janine. Democracia versus República – a questão do desejo nas lutas sociais. Bignotto, Newton (org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. p. 22.
[15] Ribeiro, Renato Janine. A República. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 57.
[16] Comparato, Fábio Konder. Prefácio. In: Müller, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 28.
[17] Berlin, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 265.
[18] Oliveira, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 6. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 459.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 15 de novembro de 2021.