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30/01/24
Fernando Facury Scaff
A Constituição havia estabelecido em sua origem um teto remuneratório para os servidores públicos, tomando por base o que recebessem os membros do Congresso Nacional, ministros de Estado e ministros do Supremo Tribunal Federal e seus correspondentes nos estados e nos municípios.
Em 2003 a EC 41 alterou o texto do inciso XI do artigo 37 mantendo o teto para os servidores públicos federais e criou subtetos para os demais entes federados.
Para os servidores públicos municipais o subteto equivale ao que receber o prefeito.
Para os servidores públicos estaduais, foram criados diferentes subtetos: (1) no âmbito do Poder Legislativo, o que receberem os deputados estaduais; (2) no âmbito do Poder Judiciário, o que for recebido pelos desembargadores; e (3) no âmbito do Poder Executivo, o subsídio mensal do governador do estado, (4) excetuados os membros do Ministério Público, procuradores e defensores públicos, que se vincularão ao subteto do Poder Judiciário estadual, que está limitado a 90,25% do que recebe um ministro do STF.
Estará correta a exceção apontada (item “4”), pois promotores, procuradores e defensores fazem parte do Poder Executivo, mas foram atrelados ao subteto do Poder Judiciário estadual? Penso que sim, pois não parece adequado que haja diferenciação remuneratória entre atividades que, de certa forma, atuam em conjunto, colaborando para a realização da Justiça.
Magistrados e procuradores estaduais
O STF decidiu nesse sentido na ADI 3.854, relatada pelo ministro Gilmar Mendes, julgada em 4/12/2020, inclusive extrapolando os limites federativos impostos, deslocando o subteto dos magistrados estaduais para o vencimento pleno (teto) dos ministros do STF, equiparando-os ao dos juízes federais. Foi aplicada interpretação conforme à Constituição para o artigo 37, XI, declarando ser inconstitucional haver um subteto para os juízes estaduais, devendo ser aplicado o mesmo teto dos juízes federais.
Posteriormente, em 26/10/2022, como um complemento natural da decisão anterior, o ministro André Mendonça, no ARE 1.144.442, afastou o subteto remuneratório estadual para os procuradores do estado, vinculando-os ao teto dos procuradores e juízes federais.
Nos dois casos o argumento central foi o caráter nacional da estrutura judiciária brasileira, interpretando o artigo 37, XI, CF, sem redução de texto, declarando que as categorias que possuem caráter nacional não tenham tratamento diferenciado em razão de recortes federativos, no que se refere ao teto remuneratório. Logo, é inconstitucional que um juiz ou promotor estadual tenha um teto menor (= a um subteto) que o de um juiz federal.
Em apertada síntese, o STF decidiu nesses julgamentos que, especificamente no que se refere ao teto remuneratório, o princípio da isonomia prevalece sobre o princípio federativo.
Carreira de docente
Adotada essa premissa, que considero válida, como ficam outras atividades que possuem igual dimensão nacional? Observemos a atividade docente.
É nítido que a Constituição estabelece uma estrutura nacional para a atividade educacional. O artigo 211 prescreve que todos os entes federados organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino. O artigo 206 prescreve que o ensino deve ser ministrado amparado em vários princípios, dentre eles o da valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos aos das redes públicas, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, e com piso salarial profissional nacional, nos termos de lei federal.
O artigo 214 estabelece plano nacional de educação, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades, elencando, dentre outros objetivos, a promoção humanística, científica e tecnológica do país. Este artigo é a base da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBE), que articula o sistema nacional de educação.
Existe ainda o sistema de financiamento nacional para equalizar a remuneração dos docentes do ensino básico de estados e municípios (Fundeb) impondo à União o dever de subsidiar os demais entes federados (artigo 212-A, V, VI e §1º, CF).
Tratamento discriminatório
Há, portanto, um sistema nacional de educação, visando concretizar um dos direitos sociais elencado no artigo 6º, e que se constitui em um direito fundamental, cláusula pétrea da Constituição (artigo 60, §4º, IV). As universidades fazem parte desse sistema, conforme o artigo 217, CF, que as obriga a realizar ensino, pesquisa e extensão de forma indissociável,
Os profissionais de ensino, de todos os níveis, são peças-chave dentro desse sistema nacional. Trata-se de uma atividade de mão-de-obra intensiva, sem a qual não existe o processo de ensino-aprendizagem. Mesmo com a ampliação do uso de tecnologias para a educação, é imprescindível a figura do professor por trás de todo o sistema.
Ocorre que, da forma como vem sendo interpretado o inciso XI do artigo 37, CF, está sendo imposto um tratamento discriminatório entre os docentes de universidades estaduais em face dos docentes de universidades federais, o que, a médio e longo prazo, pode gerar repercussões catastróficas como a fuga de cérebros, o que esvaziaria diversos centros de excelência hoje consolidados, o que se configura como um problema intergeracional. Aos docentes estaduais aplica-se um subteto; aos docentes federais aplica-se um teto, obviamente superior.
Diferenciação inconstitucional
Identifica-se neste ponto uma “inconstitucionalidade relacional”, conforme as palavras do ministro Gilmar Mendes na ADI 3.854, “porque o postulado da igualdade pressupõe, pelo menos, duas situações as quais se encontram numa relação de comparação. É que inconstitucional não se afigura, nesse caso, a norma A ou B, mas a disciplina diferenciada”.
Não se trata de aumento de salário, o que é vedado pela Súmula 339, pois não se discute isonomia entre categorias de servidores, mas interpretação não-discriminatória quanto à origem de seu vínculo de serviço, uma vez que os docentes universitários estaduais estão sujeitos a um subteto, enquanto os docentes de universidades federais encontram-se sujeitos a um teto. Esse abjeto subteto alcança apenas o topo da carreira docente estadual, não sendo aplicado indiscriminadamente a todos os docentes.
Só estão sujeitos a esse subteto remuneratório os docentes que, na forma da autonomia federativa de cada ente estadual, cumprirem os respectivos planos de carreira, tendo ingressado exclusivamente por concurso público de provas e títulos (artigo 206, V, CF), e, para chegar a tal nível de remuneração, passem por diversos concursos internos e cheguem a topo da carreira, com dedicação exclusiva àquela instituição de ensino superior. O impacto financeiro é ínfimo, pois incide sobre muito poucos docentes.
Logo, não se trata nem de aumento de remuneração, e nem de equiparação salarial, mas do afastamento de um inconstitucional discrímen, em tudo idêntico ao que foi usado para a declaração de inconstitucionalidade do subteto dos juízes estaduais, procuradores etc.
Argumento federativo não vale
Afinal, qual a lógica do discrímen? Por qual razão um docente da USP ou da Uerj em final de carreira e em regime de dedicação exclusiva àquela instituição deve ter sua remuneração limitada a um subteto, e os docentes da UFPR ou da UnB, igualmente situação, devem estar limitados a um teto superior? Não existe razão que determine esta discriminação. O discrímen utilizado não tem amparo na isonomia constitucional.
Nem mesmo o argumento federativo ampara essa discriminação. O federalismo, que garante a autonomia dos entes federados, serve para os planos de carreira, que determinarão a remuneração e as formas de progressão funcional, mas não para uma imposição forçada e discriminatória para aqueles que, cumprindo todas as determinações legais do plano de carreira, cheguem ao seu topo, ao final de décadas de dedicação integral ao ensino, pesquisa e extensão à uma única instituição.
Uma coisa é a autonomia federativa para estabelecer os critérios remuneratórios, outra é a imposição discriminatória de diferentes tetos a um sistema nacional, aplicando aos docentes estaduais um subteto. É como se um docente de uma universidade estadual fosse um docente menor em face dos docentes das universidades federais, chegando ao final de sua carreira docente – pois tal norma só se aplica a esta fração ínfima do total de docentes das universidades. Trata-se de uma discriminação odiosa em face da interpretação de um injustificado e inadequado discrímen.
Usar o argumento da diferente fonte pagadora, pois em um caso são os cofres estaduais e no outro é o cofre federal, acarretará uma interpretação discriminatória por conta da origem dos recursos, o que infringe o artigo 3º, IV da Constituição, que estabelece como objetivo da nossa República, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, dentre outras formas de discriminação.
É curioso que, de um lado, o sistema nacional de educação busca equalizar a remuneração dos docentes por meio do apoio financeiro da União para complementar a remuneração dos docentes do ensino básico dos estados e municípios (Fundeb), e, por outro, se estabelece um subteto para os docentes estaduais em final de carreira, discriminando-os em face dos docentes federais em igual situação. Não faz sentido.
ADI 6.257 discute a questão
Como afirmou o ministro Luiz Fux, ao votar no Tema 377 (RE 612.975, p. 84), “essa desvalorização do trabalho vai gerar um desânimo de assunção, pelas melhores cabeças do país, de funções que podem auxiliar o poder público e, com isso, gerar também uma violação tanto ao princípio da isonomia, quanto ao princípio da eficiência”.
É usual na atividade científica e tecnológica os docentes trabalharem em rede, o que se verifica em diversos âmbitos, como em medicina, biologia, matemática, engenharias etc., mas, com a interpretação dada ao artigo 37, IX, os docentes das universidades estaduais estão limitados a um subteto remuneratório menor que seus congêneres de universidades federais, limitados em sua remuneração a um teto superior. Estará correta essa interpretação?
A questão do subteto aqui exposta está em debate na ADI 6.257, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Liminar com minuciosa argumentação foi concedida pelo ministro Dias Toffoli, em janeiro de 2020. Julgamento pautado para o próximo dia 7 de fevereiro.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 30 de janeiro de 2024.