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18/09/23
Por Fernando Facury Scaff*
O STF (Supremo Tribunal Federal) jugou em agosto o RE 1.420.691, que se transformou no Tema 1.262, tendo sido fixada por unanimidade a seguinte tese: “Não se mostra admissível a restituição administrativa do indébito reconhecido na via judicial, sendo indispensável a observância do regime constitucional de precatórios, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal”. O trâmite foi peculiar, pois na mesma sessão de julgamento foi reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito, o que não é usual.
O caso foi relatado pela ministra Rosa Weber, revertendo o julgamento do TRF-3, que possui jurisprudência consolidada em sentido oposto, permitindo que se realize a repetição administrativa de indébito, reconhecido pela via judicial, sem a sistemática de precatórios. Na decisão foi mencionada a jurisprudência do STF a respeito e distinguido o Tema 1.262 do Tema 831, este relatado pelo ministro Fux prescrevendo que “o pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva deve observar o regime de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição Federal”.
A distinção se cinge ao fato de que no Tema 831/Fux se discutiu a possibilidade de restituição administrativa dos valores cobrados a maior nos cinco anos que antecederam a impetração de mandado de segurança, ao passo que no Tema 1.262/Weber, o debate se referiu ao necessário rito dos precatórios independentemente do tipo de ação interposto, impedindo a restituição administrativa dos valores reconhecidos como indevidos.
Não me parece que a solução encontrada pelo Tema 1.262/Weber tenha sido a melhor, em face de uma distinção básica: o sistema de precatórios foi criado para a realização de despesas públicas fruto de decisões judiciais, o que acarretou a criação de um procedimento para inserir previsão orçamentária específica para seu pagamento, isto é, o precatório.
No caso das repetições de indébito tributário a situação é diametralmente oposta, pois o dinheiro já havia ingressado nos cofres públicos, e a devolução não se caracteriza como uma despesa decorrente de ordem judicial, mas como o que realmente é: uma devolução de recursos que já haviam ingressado nos cofres públicos. Logo, não se trata de uma despesa, mas da devolução de recursos que não deviam ter sido recolhidos — daí a lógica da repetição de indébito, isto é, devolução de valores indevidamente carreados aos cofres públicos.
O limite de qualquer receita tributária é o Princípio da Estrita Legalidade, o que implica em dizer que deve ser devolvido tudo que tiver sido recolhido acima do limite legal estabelecido, pois inconstitucional. Logo, identificada cobrança a maior do que a legalmente devida, o Estado deve devolver aos contribuintes, sem maiores delongas, da forma menos onerosa possível, pois estes já foram apenados com o indevido recolhimento à margem da lei.
Se a decisão judicial for para ampliar o montante pago por uma desapropriação, ou pagar uma gratificação a servidor que a devesse ter recebido a seu tempo e modo, estaremos defronte a uma despesa, decorrente de ordem judicial, na qual cabe o sistema de precatórios. Sendo a decisão judicial para devolver tributo pago a maior, não cabe precatório, pois não se trata de despesa, mas de devolução, uma vez que o dinheiro ingressou irregularmente no Tesouro. Neste caso deveria até mesmo haver a imposição de multa pela conduta irregular do Fisco quando exigisse tributo indevido — claro que a multa se sujeitaria ao regime de precatórios, não o montante principal a ser devolvido.
É contra a lógica jurídica estabelecer o regime de precatórios para devolver o que foi recolhido a maior. Se fosse o caso de obrigar o Estado a pagar o que não pagou, a lógica precatorial seria plenamente adequada — mas não é o que ocorre nas repetições de indébito, que se referem à devolução do que foi pago à maior. Enfim, não se trata de despesa, mas de devolução.
É inadequada a lógica presente no Tema 831/Fux, pois coloca o rito processual do mandado de segurança acima do direito material.
Porém a situação se torna ainda pior no caso do Tema 1.262/Weber, pois aplica a dinâmica dos precatórios para toda e qualquer repetição de indébito tributário, seja qual for a via processual eleita. O prejuízo para a ordem jurídica é enorme.
Para tornar curta uma longa história, pode-se resumir a posição aqui exposta à seguinte afirmativa, quase que como uma Tese a ser discutida pelo STF: A sistemática de precatórios é indevida para a devolução de tributos que ingressaram nos cofres públicos à margem do Princípio da Estrita Legalidade, independentemente do meio processual utilizado para tanto.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 18 de setembro de 2023.