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20/03/23
Por Fernando Facury Scaff*
Recentemente o Supremo Tribunal Federal dirimiu o conflito de competência tributária existente entre estados e União sobre a transmissão de bens transmitidos por herança ou doação, mesmo quando acarretem ganhos de capital, conforme noticiado pelo jornal Valor Econômico, em reportagem de Bárbara Pombo, veiculada em 14/3/23, explicitando a decisão da 1ª Turma do STF (ARE 1.387.761, relator ministro Roberto Barroso), que reconheceu o direito dos contribuintes de serem tributados apenas pelos estados, e da 2ª Turma (RE 943.075, rel. min. Nunes Marques), que entendeu não haver matéria constitucional em debate, validando, com isso, a decisão do 1º TRF, que manteve apenas a tributação estadual, afastando a federal. Ainda não há pronunciamento do Plenário do STF.
O assunto não é novo no âmbito doutrinário, conforme exposto por mim e por Francisco Secaf Silveira em texto publicado no livro 100 anos do Imposto de Renda no Brasil, organizado por Marcelo Magalhães Peixoto e Alexandre Evaristo Pinto e editado pela Apet (Associação Paulista de Estudos Tributários), a partir do qual são feitos os apontamentos a seguir, em breve resumo do artigo publicado.
No texto mencionamos que a partir do estabelecimento de um federalismo fiscal, a Constituição de 1988 dividiu as competências tributárias entre União, estados, municípios e Distrito Federal. Especificamente em relação aos impostos, a divisão de competências foi estabelecida de forma rígida, de modo que a cada ente foi atribuído um conjunto distinto de fatos jurídico e/ou econômicos. Desta forma, a competência de um ente para instituir impostos sobre determinado fato exclui a competência dos demais. A despeito disso, não é raro que ocorram conflitos entre os entes federados.
A doação é fenômeno expressamente previsto pela Constituição como tributável pelos Estados, que tem competência para instituir o ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação). De outra parte, do ponto de vista daquele que recebe a doação (donatário), a doação representa acréscimo de patrimônio, com potencial tributação pelo Imposto de Renda (da União). Surge daí a discussão sobre uma possível bitributação: autoriza a Constituição a tributação das doações pelos Estados (ITCMD) e pela União (IRPF), quando ocorrer ganho de capital? O ponto de contato entre Imposto de Renda e ITCMD é tamanho que se ilustra no fato de os fiscos estaduais adotarem como mecanismo de fiscalização do ITCMD as doações informadas na Declaração do IRPF.
A CF (artigo 153, I) outorgou competência para a União tributar a renda, que deixando de lado as discussões entre tipo e conceito constitucionais, abrange o acréscimo patrimonial. A doação também se apresenta como acréscimo patrimonial, pois os valores ou bens doados acrescem ao patrimônio do donatário.
O CTN, no artigo 43, I, define a renda como produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. Vê-se que a doação não se enquadra no referido inciso. O inciso II amplia a possibilidade de tributação da renda, ao qualificá-la como aquela advinda de “proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos nas situações anteriores”. Se as doações não representam produto do capital e do trabalho, é necessário avaliar o alcance do vocábulo “outros proventos” trazido pelo Código Tributário Nacional. Autores como Bulhões Pedreira, Gilberto Ulhoa Canto, Alcides Jorge Costa e Misabel Derzi comentam esse artigo do CTN, podendo-se concluir que o Código traz uma redação demasiadamente ampla e que facilmente permitiria enquadrar a doação como “outros proventos” ou “outras formas de acréscimo patrimonial”.
Considerando que as doações foram submetidas pela CF à competência dos Estados (artigo 155, I), há que se limitar o conceito de renda à própria competência constitucional. Considerando a forma federativa e a concepção de uma divisão rígida de competências constitucionais em relação aos impostos, a específica previsão do artigo 155, inciso I, afasta a tributação das doações pelo Imposto de Renda. O artigo 6º da Lei nº 7.713/88, estabelece que, que para fins do IRPF, não deva haver tributação do valor dos “bens adquiridos por doação ou herança”. O texto é redigido sob a forma de isenção, o que é algo completamente diferente de invasão da esfera de competência tributária constitucionalmente estabelecida. As isenções podem ser revogadas, a invasão de competência tributária é inconstitucional.
O problema prático se identifica quando ocorre doação de bens em valor superior ao custo de aquisição ou ao valor registrado pelo doador. A diferença entre o valor registrado e o valor objeto da doação é tributada pelo IRPF como ganho de capital (artigo 23 da Lei nº 9.532/97), podendo ser avaliado (1) a mercado ou (2) pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador. Se for efetuada a valor de mercado, a diferença será tributada pelo IR, como ganho de capital, decorrente da diferença entre o custo de aquisição e o valor da transferência ou valor de mercado.
Nesse sentido, haverá tributação imediata do ganho de capital se o contribuinte optar pela primeira hipótese, isto é, se a transferência for desde logo pelo valor de mercado, realizando-se imediatamente o ganho de capital (e a respectiva tributação da renda), quando então o donatário/herdeiro/legatário deverá registrar o valor de mercado na sua declaração, reduzindo o potencial e futuro ganho de capital em transferência posterior. Haverá tributação diferida na segunda hipótese, se ocorrer transferência por sucessão (incluída aqui a doação) pelo “valor de custo” (registrado na Declaração), pois se vai postergar o potencial ganho de capital (e a respectiva tributação da renda) para o momento em que donatário/herdeiro/legatário realizar eventual alienação, em especial porque este deve registrar em sua declaração o valor da transferência.
Neste caso o debate se torna mais turvo, pois introduz outro elemento de análise, que é o dos distintos fatos geradores. Em outras palavras, são fenômenos independentes o “auferimento de renda decorrente da doação” e a “transmissão de bens por doação”? Essa distinção levaria à conclusão de que não há cumulação indevida de competências?
Ocorre que essa análise deve ser identificada a partir de critérios extraídos do próprio sistema constitucional tributário, com foco na discriminação de competências, de modo a proteger o contribuinte contra um possível “exagero de tributação”, expressão cunhada por Luís Eduardo Schoueri, apontando o risco de a cumulação de incidências acabar por ultrapassar a capacidade contributiva ali manifestada. Nessa linha, a doação, seja para fins de tributação da renda seja para fins de tributação pelo ITCMD, representa, em princípio, um mesmo fenômeno, que deve a priori se submeter exclusivamente à tributação pelos entes estaduais.
O fato é que a Constituição atribuiu aos estados a função de tributação das doações (pelo ITCMD), excluindo a tributação pela União (pelo IR), mesmo quando houver ganho de capital. Tal interpretação deve considerar, além da divisão rígida de competências e do respeito ao federalismo fiscal, o princípio da capacidade contributiva, afastando exagero da tributação sobre o patrimônio.
A disputa federativa em torno das fontes tributárias reflete igualmente na arrecadação e nos moldes do federalismo brasileiro. Espera-se que o STF mantenha seu atual entendimento sobre a matéria reconhecendo aos estados a competência tributária exclusiva para a tributação de doações, mesmo quando acarretem ganhos de capital.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em 20 de março de 2023.