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01/02/22

CONJUR: Tributo sobre tributo: propostas para modificação do tema 69 da repercussão geral

Por Fernando Facury Scaff*

Suponho que todos conheçam a novela do ICMS sobre a base de cálculo do PIS e da Cofins. Quem conhece pule os dois próximos parágrafos; quem não conhece, sugiro leitura de ambos.

O assunto é simples. Quem fosse calcular o valor dessas contribuições (PIS e Cofins) tinha que incluir o valor do imposto (ICMS) na base do cálculo, e isso foi declarado inconstitucional. Parece simples, não? Pois é mesmo simples o entendimento, tanto que a Tese com Repercussão Geral 69, fruto do julgamento do RE 574.706 é direta: “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”.

A trajetória do assunto no STF foi longuíssima. O tema chegou àquela Corte em 1998 sendo que desde 2006 o STF já havia proclamado maioria em favor do contribuinte, como se vê do “extrato da Ata” do RE 240.785, julgado em 2014. O RE 574.706, que gerou a Tese com Repercussão Geral 69, chegou ao STF em dezembro de 2007, tendo sido reconhecida a repercussão geral da tese em abril de 2008. O julgamento foi realizado em 15 de março de 2017 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, tendo por relatora a Ministra Cármen Lúcia. Foram opostos embargos de declaração, julgados em 13 de maio de 2021 e só em 09 de setembro de 2021 houve o efetivo trânsito em julgado. Pelo impacto econômico, o caso ficou conhecido como “a tese do século”.

Pois bem, entremos no assunto da coluna de hoje.

Vamos partir do que o STF decidiu no caso acima, Tese 69, isto é, que “o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”.

Proporei algumas mudanças na redação da Tese 69, que bem poderiam ser acatadas pelo STF, permitindo que um oceano de processos fosse resolvido em todos os tribunais do país, pacificando estes litígios entre o Fisco federal e os contribuintes.

Uma primeira sugestão de alteração seria entender que: “nenhum imposto compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”. Com isso, o ISS seria afastado da base de cálculo dessas duas específicas contribuições, objeto do RE 592.616 (Tema 118 da repercussão geral). O mesmo ocorreria quanto à inclusão dos créditos presumidos de ICMS nessa mesma base de cálculo (RE 835.818, Tema 843 da repercussão geral).

Uma segunda sugestão de alteração, mais abrangente, seria entender que: “nenhum imposto compõe a base de cálculo para a incidência de contribuições”. Caso acatado este segundo entendimento, isso também valeria para a exclusão de impostos sobre a base de cálculo da CPRB (Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta) que não é Pis nem Cofins, mas também é uma contribuição. Isso resolveria a incompreensível decisão pela constitucionalidade de manter o ICMS na base de cálculo da CPRB (RE 1.187.264, Tema 1048 da repercussão geral), entendimento também aplicado quanto à inclusão do ISS na base de cálculo daquela contribuição (RE 1.285.845, Tema nº 1135 da repercussão geral).

Uma terceira sugestão, ainda melhor, seria entender que: “nenhum tributo compõe a base de cálculo para a incidência de outro tributo”. Com isso, além dos casos acima descritos, seriam também resolvidos aqueles em que se discute a exclusão do ICMS e do ISS da base de cálculo presumida do IRPJ e da CSLL, bem como a exclusão do PIS e da Cofins na base de cálculo do próprio PIS e da Cofins. Isso desmontaria o tijolo com tijolo que cria um desenho mágico em nosso sistema tributário, tal qual na música Construção do Chico Buarque.

Peço aos colegas tributaristas, que atuam contra ou a favor dos Fiscos, que me deem razões jurídicas para que, à luz da Tese 69, essas sugestões não sejam acatadas. Sinceramente, não vislumbro nenhuma. As mudanças sugeridas são sutis, mas cada qual traria enorme repercussão.

Convenhamos que, para que as decisões do STF tenham a necessária e completa integridade, coerência e consistência sobre o sistema tributário, a terceira sugestão exposta é a mais adequada, transformando a redação do Tema 69 da repercussão geral para: “nenhum tributo compõe a base de cálculo para a incidência de outro tributo”.

Só dessa forma o STF cumpriria o art. 926 do CPC, que determina que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Decidir todos esses Temas fracionadamente acarretará o enorme risco de não haver nem coerência, nem consistência, nem integridade jurisprudencial em matéria tributária na nossa mais alta Corte, complicando ainda mais o já complicado sistema tributário nacional. Revisitar o Tema 69 para ampliar sua abrangência é uma urgente medida de justiça tributária, que o STF pode e deve fazer, o quanto antes.

Pós-escrito: Tal como Umberto Eco, em O nome da Rosa, acredito que os livros falam entre si nas bibliotecas, quando os humanos se afastam deles. A alegoria de Eco pode ser estendida ao presente texto, que dialogou com duas excelentes retrospectivas veiculadas nesta ConJur: a de Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski e a de Rebeca Drummond de Andrade Müller, Mariana Fernandes e Martha Rosso Leonardi. Sem elas, teria sido uma tarefa hercúlea indicar todas as decisões em debate no STF que envolvem as assim chamadas teses filhotes do afastamento do ICMS da base de cálculo do Pis e da Cofins (Tema 69). Agradeço a todos.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico em  24 de janeiro de 2022.