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03/10/23

FOLHA DE SÃO PAULO: Surge um governo para pagar precatórios pedalados

Por Fernando Facury Scaff*

Tom Jobim dizia que o Brasil não é um país para amadores. Surge um governo que quer pagar precatórios atrasados e aparecem críticas por todos os lados para tirar o foco da questão central: o governo quer pagar e não pedalar os precatórios.

Para esclarecer o problema deve-se retornar a um passado não tão distante. O governo Bolsonaro incentivou, e, em conjunto com o Congresso, aprovou as Emendas Constitucionais (EC) 113 e 114, visando submeter o pagamento dos precatórios ao famigerado teto de gastos. Essas normas criaram um subteto para os precatórios ao determinar que a partir de 2021 o montante que ultrapassasse o valor corrigido desde 2016 deveria ser colocado em uma fila para pagamento no ano posterior, e assim sucessivamente, criando uma espécie de bola de neve que cessaria em 2026, quando então o valor acumulado deveria ser pago integralmente, em conjunto com os rotineiros precatórios anuais.

Parece óbvio que esse procedimento não daria certo, pois em 2026 o valor a ser pago seria enorme, e o teto de gastos ainda estaria em vigor, obrigando a novas pedaladas. Era uma manobra para furar o teto de gastos entre 2021 e 2026, período coincidente com as eleições de 2022 e o novo mandato presidencial, pós-Bolsonaro, que ele pretendia ocupar e os eleitores não lhe concederam.

Os prejudicados propuseram ações perante o Supremo Tribunal Federal, destacando-se a ADI 7047, apresentada pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista) e a ADI 7064, interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, ambas reunidas sob relatoria do ministro Luiz Fux. A Advocacia da União defendeu integralmente a medida em março de 2022 e a Procuradoria da República se manifestou em maio de 2022, apresentando uma interpretação que não enfrentava diretamente o problema. Diversos amici curie intervieram na demanda.

Eis que, de forma absolutamente correta, em setembro de 2023 a Advocacia Geral da União retorna aos autos e se manifesta pela inconstitucionalidade das duas Emendas Constitucionais. Esse procedimento da AGU merece aplausos, pois traz o debate aos trilhos adequados, uma vez que as inconstitucionalidades eram flagrantes desde o primeiro momento em que o projeto dessas Emendas Constitucionais foi apresentado. Aqui se encontra o pedido principal da recente manifestação da AGU.

Neste ponto se deve dividir a análise.

Juridicamente o debate está findo e o processo está apto a ser decidido, de forma ágil, já que não mais subsistem argumentos de defesa das normas imputadas como inconstitucionais.

Existe, de forma lateral, um debate econômico-contábil que tem gerado o tiroteio contra a medida. Esse aspecto está tecnicamente submetido à análise do STF nos pedidos subsidiários formulados na petição da AGU, e que consistem basicamente em solicitação de autorização para que a União segregue o valor do principal do valor dos juros, identificando os primeiros como despesa primária e os segundos como despesa financeira.

Na verdade, não é necessário que o STF adentre na análise dos pedidos subsidiários formulados pela AGU, pois são matéria econômica e contábil que o STF não necessita apreciar, sendo suficiente decidir que as Emendas Constitucionais são inconstitucionais, e, com isso, finalizar o julgamento. Juridicamente a solução está posta – aqui está o foco sob a ótica do direito. O problema econômico-contábil diz respeito à outra pauta, sujeita a chuvas e trovoadas de ocasião, e que não se caracteriza como matéria jurisdicional.

Embora não seja economista e nem contador, mas de área acadêmica correlata, jusfinancista, adentro no debate partindo do fato de que não mais vigora o teto de gastos, revogado pelo arcabouço fiscal, com o pomposo nome de Regime Fiscal Sustentável (Lei Complementar 200/23), que manteve a segmentação das despesas em primárias e financeiras, muito embora não as tenha definido. Foi perdida uma oportunidade de ouro de acabar com tal distinção e adotar o parâmetro de superavit nominal, como advoga Delfim Netto há anos.

Li algumas opiniões econômicas no sentido de que apenas os juros financeiros devem ser considerados como despesas financeiras, e não os juros em geral. Tal análise não tem pertinência jurídica, pois não existe norma nesse sentido. Esse raciocínio está segmentado sob uma lógica exclusivamente financeira, e não na natureza jurídica da despesa, pois uma coisa é o principal de qualquer dívida, e outra são os juros que sobre ela recaem —qualquer primeiroanista de direito sabe isso. Se a classificação contábil segue algum manual em sentido contrário, isso não se caracteriza como norma jurídica.

Outras opiniões expostas no debate apresentam o risco de que todas as demais despesas com juros venham a ser reclassificadas contabilmente como despesas financeiras, e, assim, afastadas da classificação de despesas primárias. Tal risco efetivamente não existe na presente ocasião, o que se identifica na própria petição da AGU, que requereu expressa autorização do STF para assim proceder no específico caso sub judice. Não foi um pedido geral, realizado no âmbito de uma ação em que esse tema esteja sendo discutido. Foi um pedido subsidiário, dentro de uma ação em que o objeto é circunscrito ao pagamento desses precatórios, cujo valor se encontra mesclado por juros em razão da inadimplência. Logo, uma coisa é o principal da dívida, outra são os juros, que crescem mês a mês. O risco de disseminação da reclassificação não existe, pois circunscrito judicialmente. Para que ocorra essa disseminação é necessário haver norma, hoje inexistente, o que coloca a generalidade dessas operações em um limbo classificatório que gera esse debate e justifica o pedido formulado —que o STF pode ou não apreciar, embora não seja matéria jurisdicional.

Exatamente por isso é que foi formulado outro pedido subsidiário no sentido de que os futuros precatórios sejam expedidos distinguindo o que é principal e o que reflete os juros, o que atualmente não é feito. Essa também não é matéria jurisdicional, sendo muito mais adequada a adoção de uma medida administrativa pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Enfim, para tornar curta uma longa história, deve-se aplaudir neste caso o correto procedimento da AGU, em conjunto com a Secretaria do Tesouro Nacional, que se encontra maduro para ser julgado pelo STF, que pode ou não adentrar nos aspectos econômicos que lhe foram submetidos, todos subsidiários ao ponto central em debate, que é o da patente e ora reconhecida inconstitucionalidade das alterações efetuadas através das Emendas Constitucionais 113 e 114, que foram estimuladas pelo ex-ministro Paulo Guedes, do governo Bolsonaro, que inegavelmente pedalou o pagamento dos precatórios. O julgamento do STF pode despedalar essa medida.

O ideal seria que não mais existissem precatórios, pois os governos não deveriam descumprir as leis, o que gera esse tipo de problemas; mas aí seríamos governados por anjos e não por homens, o que é um sonho.

O respeito às ordens judiciais, que se consubstanciam nos precatórios, deve ser restaurado em prol da segurança jurídica.

Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.

Texto originalmente publicado na Folha de São Paulo em 03 de outubro de 2023.