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10/08/20

O uso da folha de salários como base de cálculo das contribuições

Fernando Facury Scaff*

Uma premissa fundamental no direito nos revela que uma coisa é o que se deseja, outra é o que determina a ordem jurídica. Essa diferença é importantíssima para análise de um julgamento em curso no plenário virtual do STF.

Trata-se do RE 603.264, no qual se discute se é constitucional a utilização da folha de salários como base de cálculo das contribuições sociais e das CIDEs após o advento da EC nº 33/2001, de relatoria da ministra Rosa Weber, que, inclusive, já proferiu seu voto pela inconstitucionalidade.

Alega-se que o §3º, art. 8º, da Lei 8.029/90, não foi recepcionado pela EC 33/01, pois utiliza a folha de salários como base de cálculo de uma CIDE. O cerne do debate diz respeito à mudança constitucional efetuada pela EC 33/2001, que acresceu o §2º ao art. 149.[1]

Argumenta-se, ainda, que o rol do art. 149, § 2º, III, “a“ é taxativo, e não exemplificativo, porém, por si só o texto é claro em face da palavra “poderão” no inciso III, o que denota facultatividade, isto é, o exercício de uma possibilidade e a abertura para o uso de outras bases de cálculo.

Porém, a questão é muito mais ampla: se considerar que a EC 33/2001 afastou a base de incidência das contribuições sociais e da CIDE sobre a folha de salários, toda a sistemática atualmente existente será considerada inconstitucional (não recepcionada), inclusive a das contribuições previdenciárias (art. 195, I, “a”, CF).

Nesse sentido, deve-se sempre recordar os ensinamentos do ministro aposentado Eros Grau, de que “não se interpreta o direito em tiras. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum”.[2]

A subsunção das contribuições previdenciárias às contribuições sociais é pacífica no STF desde o século passado até os dias atuais. Um voto precursor nesse sentido foi exarado pelo ministro Carlos Mário na ADI 447, de relatoria do ministro Octavio Gallotti, em julgamento ocorrido em 05 de junho de 1991. Então discutia-se a Taxa de Conservação Rodoviária, instituída pela Lei 8.155/90.

Posteriormente esse entendimento foi reafirmado no RE 138.284-CE, de relatoria do ministro Carlos Mário, julgado em 01 de julho de 1992. Discutia-se a constitucionalidade da Lei 7.689/88, que havia criado a CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

Nesse julgamento ficou assente que a Constituição havia estabelecido uma nova sistemática de contribuições no art. 149, que deveriam desta forma ser consideradas, conforme voto vitorioso do ministro Carlos Mário:

“O citado art. 149 institui três tipos de contribuições: a) contribuições sociais, b) de intervenção, c) corporativas. As primeiras, as contribuições sociais,

desdobram-se, por sua vez, em a.1) contribuições de seguridade social, a.2) outras de seguridade social e a.3) contribuições sociais gerais.”

Este trecho demonstra que as contribuições previdenciárias estão subsumidas às contribuições sociais. E não se diga que este julgamento, que é do século passado, não deitou raízes na jurisprudência do STF, pois se encontra referido em julgados recentes, dos quais se menciona de modo exemplificativo o RE 1.053.574-RS, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, julgado em 25 de outbro de 2019 e o EDEDRE 211.446-GO, de relatoria do ministro Luiz Fux, julgado em 20 de setembro de 2018, além da emblemática ADI-MC 2.568, relatada pelo ministro Moreira Alves em 09 de outubro de 2002 e em sua consentânea ADI 2.568, relatada pelo ministro Joaquim Barbosa, em 13 de junho de 2012 – estas tratando da contribuição social geral instituída pela Lei Complementar 110/2001.

Isso aponta para o alcance do que está sendo debatido no julgamento em curso pois o voto menciona apenas a questão da CIDE, porém também está em jogo toda a sistemática de base de cálculo das contribuições sociais e previdenciárias.

Caso a Corte entenda pela inconstitucionalidade da contribuição, o STF estará tacitamente revogando o art. 195, I, CF, que prevê como base de cálculo das contribuições previdenciárias a folha de salários, acarretando a falência do regime contributivo para a previdência social pública brasileira, com repercussões fortíssimas não só nos cofres públicos, mas também na sociedade como um todo.

Em apertada síntese, constata-se que a introdução do §2º ao art. 149 pela EC 33/2001 ampliou as bases de cálculo possíveis de servirem à incidência de contribuições sociais e de constituições de intervenção, mantendo as possibilidades antes existentes, como se identifica para as contribuições previdenciárias, amparadas no art. 195, I, CF, que se sustentam na base de cálculo folha de salários.

Para afastar o uso da base de cálculo folha de salários pelas contribuições deve haver mudança constitucional normativa, e não jurisprudencial.

[1] Art. 149. … §2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo: III – poderão ter alíquotas: a) ad valorem, tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro; b) específica, tendo por base a unidade de medida adotada. [2] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.

*Fernando Facury Scaff é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados